quarta-feira, novembro 30, 2005

Disfunção Abstracta

Apanhei-me hoje a reflectir sobre as cenas lamentáveis perpetradas pela cáfila que integra a claque do Inter de Milão contra o jogador côte-ivoirense Zoro no fim-de-semana passado. É certo que o fenómeno das claques (vulgo hooliganismo) é um campo fertilíssimo para a abordagem sociológica nas suas múltiplas facetas, quer seja enquanto agremiação de pessoas unidas por uma mesma cor clubística ou pela comodidade do exercício da violência sem motivação aparente. A imagem das lágrimas de um homem ferido no seu orgulho ameaçando abandonar o quadrilátero ainda baila nos meus olhos.
Tenho algumas certezas e uma delas diz-me que a claque é, antes de mais, uma associação de indivíduos com grande propensão para o crime. Mas como reconhecer uma claque? Como discernir a mera associação ou colectividade do bando/ gang/ agremiação facínora mascarado debaixo da cortina do futebol ou outro evento desportivo de massas? Por ser tarefa difícil e porque anda por aí muito crime organizado, esbocei uma chave dicotómica associativa para que não se faça a confusão.

1. O agrupamento costuma cantar em grupo.
a) Sabe mais de uma música. Se não, você está perante um pelotão de fuzileiros.
b) Sabe mais de catorze músicas. Se não, é uma tuna.
c) Reúne-se pelo menos uma vez por semana. Se a reunião é aos domingos, trata-se de um grupo coral.

2. O agrupamento apresenta vestuário homogéneo.
a) Parecem todos idiotas. Se parecem meninos idiotas, são escuteiros.
b) Vestem trajes coloridos. Se são muito coloridos, são travesties.
c) Os elementos usam cachecóis coloridos. É a campanha do PSD das Legislativas 2005.

3. O agrupamento entrou numa estação de serviço.
a) Todos os elementos correm para os WC’S. É uma excursão de velhinhas a Fátima.
b) Os elementos montam as mesas e desatam a comer. É um grupo de ciganos a caminho de um casamento.
c) Todos os elementos entram rapidamente na loja e estacam na parte das revistas. É um congresso de tunning.

4. Quando bafejado, o agrupamento emite odor.
a) Quando bafejado, cheira a barro. É o Rancho Folclórico de S. Pedro da Cova.
b) Quando bafejado, cheira a mofo. São os deputados da Assembleia da República.
c) Quando bafejado, cheira a ganza. É uma claque.

Ora pois bem, como é que as claques surgiram? Antes do mais, a pergunta é pertinente. O seu aparecimento, está ligado ao aparecimento do fenómeno de massas. Com o final da Segunda Guerra Mundial, a turba que fazia um apoio organizado aos clubes viu-se necessitada de alguém que pudesse alugar os autocarros e gerir as excursões. Daí a aparecerem as claques foi um tirinho. Os outros clubes, com a inveja, resolveram patrocinar as suas próprias claques, tendo-se dessa forma generalizado o fenómeno.
Há quem diga que as claques são o sustentáculo do desporto moderno. Que sem as claques os estádios estavam vazios. Eu acho que é ao contrário, sem as claques, os estádios estariam cheios. Muitos já apontaram o mal, mas ninguém quer excisar o tumor.
Um dos segredos da sobrevivência das claques está ligada à sua pseudo-militarização: a homogeneidade do fardamento; a grande resistência aos agentes climatéricos ao melhor estilo de chuva civil não molha militar, sendo frequente ver os seus constituintes nas bancadas em tronco nu à chuva e ao frio; a sistematização do exercício físico nos ginásios que lhes servem de campos de treino. A claque tornou-se até, em muitos casos, nas forças de segurança dos clubes. É comum ouvir falar de uma certa guarda pretoriana de um determinado presidente; e quando se está debaixo uma corrente de maus resultados, são a brigada de intervenção rápida na imposição da ordem acelerando a chicotada psicológica.
Recebi com natural apreensão a notícia de que a grelha da TV Cabo vai incluir um canal destinado aos bebés dos 0 aos 3 anos. Para além da mítica série Teletubies, um dos mais elaborados produtos televisivos com a capacidade de transformar o cérebro humano em merda, já estou a ver a coerência qualitativa dos programas ali expostos. A ideia é fornecer formação complementar das criancinhas no sentido de as tornar mais inteligentes. Ou por outras palavras, é um canal que permitirá aos papás terem mais tempo para si e só têm de sentar os putos em frente à ama luminosa.
Se não sabem, ficam a saber: a exposição continuada dos infantis aos televisores é muito, mas muito prejudicial. Os problemas mais graves surgem da disfunção abstracta, como são a dislexia e a discalculia, respectivamente, a dificuldade na articulação verbal e a dificuldade no cálculo matemático simples. Entre alguns dos sintomas contam-se escrever as palavras com erros ortográficos ou desacerto da colocação das vogais, a tendência para a não conclusão das palavras ou das frases e a utilização dos acrónimos. Por outras palavras, as criancinhas que desde o berço levem com o afecto televisivo terão um forte propensão em escrever N’s ao contrário, ou até não conseguir escrever de forma completa Juventude Leonina, ou escrever apenas SD. E já estou a ver a conversa entre dois jovens com discalcolia daqui a uns 20 anos:
Jovem 1: Méne, ontem mandei duas bolas de golfe à mona do láiner na primeira parte, e na segunda atirei mais quatro.
Jovem 2: E quantas atiraste ao todo?
Jovem 1: P’raí umas dez ou doze.

Após este exemplo enfático, só me resta dizer que o BabyTV será patrocinado pela Betandwin.
C.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Requiem Sem Dó Maior

Mas o que é que é isto de os humoristas portugueses quererem associar os momentos de intimidade (principalmente alusões à sedução ou até aos preliminares) às músicas do Barry White? É que lhe dão sempre com o Barry White! OK, a música presta-se a isso, mas nós também temos gajos com timbre ultra baixo em Portugal, olha, o Olavo Bilac, por exemplo (mesmo tom de voz e de pele). No outro dia era O Homem da Conspiração a ensinar o que fazer para convencer a tipa a abrir as pernas e BOING!, música do B.W. Há três dias foi no Contra Informação, onde um dos candidatos presidenciais lá metia um CD do B.W ao barulho aludindo à pré-cópula.
Eu não tenho andado a dar ao stick noutro planeta e sei que existe mais música dita sexy (é que nem se coloca a hipótese de eles andarem a ironizar com o homem). Os humoristas portugueses não perceberam que os humoristas americanos aludem ao Barry White por não reconhecerem qualidade sentimental às gaitadas do Kenny J, ou o estilo azeiteiro do Michael Bolton, pela mesma razão de eu não apreciar (é mais nem sequer admitir) música da Fafá de Belém ou do José Malhoa nos momentos alcovíticos. Por isso o Barry White é uma chavão americano para bandas sonoras da queca (eu até gosto do Lets Get It On).
Esmiucemos. Os programas acima referidos são duas criações conotadas com as Produções Fictícias, logo tem um selo de altíssima qualidade, por isso não é compreensível que haja sempre a referência ao B.W. É que o humor americano acaba por ser fácil de se fazer, se pensarmos que ironizar com uma sociedade daquelas só encontra obstáculos no “por onde é que eu vou pegar”. Começam-se a sentir os efeitos da criação circular que deriva da profunda dependência dos jovens portugueses para com a cultura americana, desde as calças de ganga, discos de carne picada grelhados e metidos em metades de pão (não conheço a palavra portuguesa para hambúrguer) e sim, na cultura comediante.
Há uma estreita relação entre as duas culturas, presente na opulência da oferta ao nível político. À semelhança dos EUA, existe em Portugal um grande incremento das más governações à produção comediante: a aparição de um ror de artistas nos últimos tempos é coincidente com o período que em História é conhecido por SLG/ PGD/QQSAF (Segunda Legislatura de Guterres/ Pseudo-Governo de Durão/ e o Que é Que o Santana Andou Mesmo a Fazer?).
Esta é uma das trombetas que anunciam o fim da comédia em português. Gil Vicente, Bocage, Eça de Queirós, Almada Negreiros, Vasco Santana, António Silva e Raul Solnado faziam comédia portuguesa e em português com temas portugueses. E sempre com elevadíssimo nível de qualidade. A cíclica ingestão governativa em Portugal provocou nos criadores de comédia o fenómeno da catadupa e muitos entraram em bloqueio criativo pelo manancial de temas que tem à disposição para abordar, à semelhança do que havia acontecido com os nossos hermanos americanos. Depois, foi fácil passar do bloqueio à perda da qualidade.
A face visível a olho nu e do espaço desta problemática é Herman José. É indiscutível que foi o melhor dos melhores: o Tal Canal, o Casino Royal, o Boião da Cultura, Herman Enciclopédia, enfim, até a Roda da Sorte; tudo pérolas de um humor 50% Benny Hill/ 50% Monty Python. Foi censurado por diversas vezes na televisão pública, mas passou à privada para apresentar (ou imitar muito mal o Tonight Show?) um programa de nudez parcial que vive à custa de um penteado loiro, de músicas populares alemãs, de um conjunto de actores cuja chama começa a apagar e do circo de monstros que ele lançou (Linda Reis, Alexandrino, etc).
Não obstante, surgiram alguns criadores que vão dando alegria à comédia, caso do Tochas, da tropa que andou muito no Levanta-te e Ri (um programa que tem um cabeça de cartaz que não chega à terra das unhas dos outros) e a equipa que produz para a Sic Radical, como o Balas e Bolinhos I & II, Ninja das Caldas e Produções Megera. Mas até isso está a mudar. Digite as palavras gatofedorento.blogspot.com na barra aí por cima e veja no que se tornaram os textos da melhor comédia: “Hoje, vai para o ar o oitavo episódio do Gato Fedorento com os sketches: "Agente faz pouco de condutor", "O Duelo", "Não faça trocadilhos com a minha profissão", "Estenógrafo apaixonado por teatro de revista", "Ninguém lamenta mais do que eu" e "Homem na bagageira"”. Pelo menos o Herman José ainda demorou vinte e cinco anos a acomodar-se.
Por isso as referências musicais na comédia deverão ser revistas, excluindo-se os romantismos em detrimento da música fúnebre com cavalos enfeitados com plumas negras a abrir o cortejo, de modo a impedir-se que a população portuguesa procrie e assista ao declínio precoce da sua juventude. Pode ser um Requiem, mas sem dó maior.
C.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Memória Ferroviária

O Comboio é um meio de transporte que encerra um mundo misterioso e grandemente apelativo ao sonho, ímpar no panorama dos transportes terrestres por esse mundo fora. O mundo da ferrovia é único. Quando comparados com ele, os outros meios de transporte ficam aquém da qualidade das memórias e confortos providos pelas composições que diariamente cruzam as estações, sendo certo e sabido que entrar num comboio é penetrar num espaço museológico onde se pode desfrutar da paisagem.
Uns dizem-me: “Ah, o autocarro também dá para ver a paisagem…”, está bem, mas e o passado? O autocarro não tem passado, é uma invenção recente e só existe porque o comboio não chega lá! Ainda para mais o autocarro é claustrofóbico, tem os assentos apertados e não dá para andar de um lado para o outro sem que o passageiro do lado nos enfie um soco nas goelas. E o motorista, ali à vista, a mirar o passageiro pelos seus três espelhos interiores? No comboio existe liberdade de movimentos e liberdade psicológica; no comboio não há condutores mirones!
O táxi assemelha-se ao o autocarro, mas possui uma vantagem: dá para sair quando quisermos. Não permite, contudo, o convívio de longo curso, já que ao quilómetro 2 da bandeirada fartamo-nos da conversa intrusiva do taxista, com as suas alusões à meteorologia, à política e ao pontapé. Ao contrário, no comboio as pessoas metem-se connosco só a partir de determinada quilometragem, após terem asseverado que não constituímos uma ameaça, no sentido de que só é ameaçador quem falar mais do que elas. E só quando não há mais nada para ler.
O comboio é uma instituição memorável. Onde é que é possível encontrar histórias como a daquele senhor que, depois de procurar lugar em todos as composições lá avistou uma vaga ao lado de uma senhora; quando ele se aproximou do lugar e começou o movimento para se anichar, a senhora disse “não”, ao que ele inquiriu “pagou dois bilhetes, minha senhora?”, ao mesmo tempo que se sentava em cima de uma saca com duas dúzias de ovos. E uma viagem entre o Porto e Coimbra que durou onze horas (+ sete que o habitual) em que até deu para um grande campeonato de sueca? Que lembranças!
E as proezas que no comboio tiveram o seu palco? Onde é que o Steven Segal limpou o sebo aos terroristas que tinham dominado o mortífero satélite no Forças em Alerta 2? E se o Crime do Expresso do Oriente se chamasse Crime no Táxi do Oriente? E se a música Take The A-Train do Duke não tivesse o Train? E Os Cinco e o Comboio Fantasma? E o Homem que via Passar os Comboios? E o Trainspotting? E os desastres ferroviários, o Pendular, etc, etc, etc. O comboio é essencial.
Ao nível cinematográfico, é certo que o Metro aparenta aproximações e já foi cenário de algumas aventuras, mas não é a mesma coisa; o metropolitano é rápido e asséptico como o sexo com uma tia da linha, não nos deixa a cheirar a gasóleo e meio penhagentos como as putas espanholas. Querem trocar dois séculos e meio de crude por meio século de lixívia (no Porto é mais ano e meio...)? Não, não queremos. O comboio é para os aventureiros e para os festivaleiros. Como é que se chega a Caminha? Por acaso nos autocarros da Turilis dá para fumar ganja? E alguém já fez interrail dentro de um táxi? Quem no seu perfeito juízo se imaginou a repudiar em pequenino os comboios e todo o seu aparato de estações, túneis, montanhas e carris, preferindo antes brincar com miniaturas de táxis pretos com tejadilho verde e autocarros pequeninos de dois andares? Digam lá!
Fiquem sabendo que alguns sociólogos defendem que o comboio é o símbolo da sexualidade na Revolução Industrial (daí a expressão “deixa-me meter-te o comboio no túnel”).
O mundo ferroviário é mágico, é especial, está-nos no sangue. Mas a magia do mundo ferroviário dever-se-á procurar também na sua analogia ao futebol. Para além da coincidência de actuar dentro de linhas e de haver jogadores que partilham a sua omnoástica, como o colombiano “El Tren” Valência e o francês Desaillis, “a Locomotiva” (talvez por ser da cor delas), o que dizer dos Chefes de Estação, com a sua bandeirinha e apito, afinal uma mistura de fiscal de linha com árbitro?
Ah, meus irmãos, é por esta e por outras que o TGV nunca será credor da minha paixão.
N-U-N-C-A.
C.

terça-feira, novembro 15, 2005

O Crítico

Uma das profissões que em Portugal mais tem cavado o fosso do reconhecimento, a par do Ocultismo e da Criação de Avestruzes, é o de Crítico. Esta profissão desenvolveu-se particularmente a partir do 25 de Abril e mais ainda desde que o Miguel Sousa Tavares aprendeu a falar. Apesar de parecê-lo, eu não sou um crítico, porque é-se Crítico a tempo inteiro; pelo contrário, edito este blog de reflexão nos meus (poucos) tempos livres (assim dou uma machadada nos detractores do trabalho intelectual), porque dirijo, na vida real, um pequeno circo de átomos. Mas muitos críticos assinam sob outras profissões, e hão-os jornalistas, professores de psicologia, advogados, gestores de pequenas empresas e críticos de televisão e de cinema.
Há que conceder que para ser-se Crítico é necessário ter-se uma coragem acima da média para reflectir sobre a plêiade de assuntos que ele aborda nos seus espaços de opinião (daquela coragem que é quase estupidez, mas não é bem: só com o criticismo frenético se chegará a esse nível). O Crítico tem de saber um pouco de tudo: tem de ser uma espécie de engenheiro-médico-filósofo. Só assim se poderá transformar num oppinion-maker, o Son Goku dos críticos.
Ao contrário das outras profissões, o Crítico não possui uma linguagem técnica, porque não existe a gíria da crítica. Mas por ser aproximado à Filosofia aplica mas não domina termos da gíria filosófica como dogmatismo, heterodoxia, hegeliano, ápodo, silogismo e paradigma. A informação que ele veicula carece muitas vezes de forma e sintaxe e é possível muitas vezes admirar verdadeiros prodígios literários como “dogmatismo heterodoxo” (isto é um oximoro).
A grande batalha do Crítico é alcançar um espaço próprio, como as folhas de um qualquer diário capaz de aglutinar o seu ensaio semanal, ou num programa de televisão de audiência escassa feito para ocupar o espaço entre as publicidades. É aqui que ele vai exercer a sua condição maior, o ser do contra. O Crítico é contra tudo e todos e até contra si: é vulgar ouvir-se o “contra mim, falo” (traduzido do vernáculo “contra mim, caralho”).
Reveste-se assim de grande actualidade o imortal Manifesto Anti-Dantas e por extenso, de José de Almada Negreiros, Poeta de Orfeu, Futurista e Tudo: “O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever. O Dantas é um autómato que deita para fora o que a gente já sabe o que vai sair. Mas é preciso deitar dinheiro”.
Concluindo, o Crítico é como os cães: para além de não conhecer o dono, alimenta-se alarvemente de toda a informação à disposição, misturando-a e quando a emanar rectalmente ela não servirá para nada, apenas para sujar as ruas e os nossos sapatos. Por isso vamos todos pegar num saquinho e, depois de o apanhar cuidadosamente por mor de não borrar os dedos, atiraremos o dejecto para um caixote do lixo a bem da saúde pública. Bem hajam.
E agora, meus senhores, é tempo de eu voltar ao trabalho e tentar que os átomos de meu circo produzam alguma molécula.

C.

segunda-feira, novembro 07, 2005

Ensaio sobre a Surdez

Estou sentado numa mesa de café. À minha volta há outras mesas mas só uma delas tem um habitante que folheia o Notícias; sentados nos bancos altos do balcão estão cinco homens, à sua frente garrafas de cerveja e as tradicionais moscas; do lado de lá o dono do café lava copos na torneira. Por trás dele as prateleiras com garrafas impregnadas de sebo, como chouriços preparados para a cura pelo fumo. Eu estou a tentar ler o meu jornal mas um barulho perturba-me, como se o som que vem do aparelho televisor adensasse um misterioso nevoeiro sobre as letras negras do maço de folhas que eu a custo ia tentando compor em margens sobrepostas. Como não me consigo concentrar, vou dando miradas à minha volta, a avaliar o recheio social do estabelecimento.
Um dos homens tem um tique esquisito no ombro, outro fala muito alto e gargalha com o tasqueiro sobre as incidências futebolísticas da semana, um terceiro tem o cabelo à jogador da bola anos 80, curto em cima mas comprido e a cair em cachos para os ombros, os outros dois são mais velhos e com cara de poucos amigos. Exceptuando o que está a falar com o tasqueiro, todos os outros estão a olhar para a TV que parece estar a debitar ainda mais alto.
Volto a olhar para o jornal e folheio só para apanhar os títulos: Tumultos em Paris, 27 mil carros queimados só este ano; «espectáculo», pensei, «era decretar a lei marcial e disparar à vista que aquilo acabava num instantinho»; Na Finlândia é possivel aceder à declaração de rendimentos do vizinho por sms, «olha que em Portugal esta merda era capaz de dar resultado … sempre ficava a saber o que é que faz o meu vizinho para ter um Mercedes e um Audi A4 Sportwagon … ou a mulher dele»; A empresa que produz o medicamento EPO vai patrocinar a Volta à Califórnia em Bicicleta «O quê? Mas afinal faz sentido, porque a Amgen só está a investir nos maior mercado da EPO»; Morreu a fundadora da revista Burda «Com 96 anos!?! De onde se prova que a foleirice dá longevidade. AHAHAHAH».
A televisão está agora mais alto. Como estou de costas não sei do que se trata, mas toda a gente está em silêncio e a seguir atentamente o conteúdo do programa. «Que programa é este que tem estes marmanjões presos ao ecrã?» interrogo-me.«Já começou o telejornal?» Volto-me e descubro que estava enganado; a fina flôr do machismo nacional está rendido aos Morangos com Açúcar.
Queixem-se que o país não vai p'ra frente, vá lá.
C.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Em Torno de Asterix L Goulês

Sendo este um espaço com predilecção pela literatura e atento ao maná editorial, foi com uma agradável surpresa e natural satisfação que assistimos ao lançamento de uma aventura de Astérix na outra língua oficial portuguesa, o mirandês, o nosso basco. Primeiramente tem de se dizer bem da tradução. Acabou-se a malapata da interpretação livre que certos tradutores vinham protelando (basta o exemplo de Die Hard = Assalto ao Arranha Céus/ Die Hard II = Assalto ao Aeroporto*), daí que Astérix, le Gaulois em mirandês é Astérix L Goulês (e não "L Ome qui bibia nel sítio c’agora tus padres bulem").
Mas esta edição não foi perfeita, por isso tenho de dizer mal de uma coisinha de nada. Como o centro do país é a nossa capital e como tudo o que se produz em Portugal tem de passar por Lisboa, mesmo não lhe dizendo respeito e lá não se produza nada, lá tivemos que gramar com o lançamento na capital. Uma primeira edição de 3.000 exemplares esgotou-se em minutos; a Mirandela e às escolas mirandelenses só chegaram fotocópias do livro.
De onde se descobre que há em Portugal uma cambada de néscios prenhes da imbecil boçalidade que medra nas margens do Mar da Palha, que não satisfeitos de não saberem falar português, insistem em comprar um livro traduzido numa língua que não entenderão, porque o mirandês é como o basco, vive dos sons bravos, das palatizações, ao passo que o lisboeta é tragicamente expirado transformando Filipes em Felipes e as vassouras em vassôras. Estou certo que este álbum, depois de folheado entre um pires de pipis e uma ginginha será arrumado sem delongas mais que o tempo de um arroto na estante, onde afinal jazem funerariamente os vinte e oito volumes da Enciclopédia Luso-Brasileira, a obra completa do Prémio Nobel Saramago ainda no plástico e um exemplar lido do Código Da Vinci.
E depois admiram-se que o PIDDAC para 2006 tenha mais uma vez uma distribuição democrática em que a região de Lisboa/Vale do Tejo leva 70% do guito; mas descanse-se que à Província caberão as fotocópias.
C.
PS: Este post esteve para se chamar Duas Reflexões em Torno da Arte de Mamar.

*chamo especial atenção para a semântica da palavra inglesa II