terça-feira, dezembro 27, 2005

A Sombra do Fotógrafo

Eu lembro-me bem dos medicamentos do antigamente. Medicamentos (agora, se calhar já não lhe chamarão isso, mas azar) que ainda hoje se vendem (e resultam) e que nos conduzem aos tempos áureos da publicidade na caixa. Um deles por exemplo, apresentava a posologia e a eficácia do produto na própria tampa. Tratava-se de um unguento anti-micótico (eu não recordo o nome), que dava para todos os males de pele, do herpes ao cieiro, e que era vendido dentro de umas caixinhas cor de pérola. E poderia desfiar aqui um rol de grandes clássicos farmacêuticos que nunca careceram de literatura médica, porque a embalagem dizia tudo. As pastilhas Valda, por exemplo: bastava abrir-se a caixinha com aquela folha de eucalipto na tampa e já se sabia que as pirâmides verdes cobertas a açúcar serviria para aliviar problemas respiratórios e da garganta. As pastilhas do Dr. Bayard, por seu turno, só a visão da imagem do senhor agasalhado e levemente encolhido com o punho em frente à boca já esclarecia que o mal dele era tosse, logo, é uma embalagem de rebuçados para a tosse. E a pasta medicinal Couto, cuja publicidade já foi feita, pasme-se, pelo Herman José quando era muito novinho? A expressão dentes brancos significava dentes brancos, mais nada. Nada de tártaros, nada de cáries e nada de gengivas. Aliás, no tempo da Pasta Medicinal Couto não haviam gengivas!
A modernidade castrou a familiaridade do medicamento; a embalagem hodierna apresenta no exterior um nome a acabar em ox ou em ina, em detrimento da marca antroponímica, mais pessoal, mais íntima, porque Couto é nome de gente, como é o é Bayard e o é Valda (as pastilhas foram inventadas pelo senhor Aparício da Silva Valda). Este é o preço a pagar pela tecnologia. Um dia acabará por perder-se todo o saber da farmácia tradicional.
E para quê a literatura médica? Porque raio se coloca uma folhinha dobrada seis vezes dentro de uma caixa de medicamentos com informação escrita em letras tão pequeninas que mais parece uma apólice de seguros? E porque é que se chama literatura médica a um mero pasquim que não tem enredo, apresenta sempre as mesmas personagens (a saber, adultos, crianças, mulheres grávidas ou em aleitação, médico e farmacêutico) e que ainda por cima já abre a porta a uma sequela, pois metade do folhetim faz alusão a possíveis efeitos secundários?

Em 1993 tive a oportunidade de visitar Marrakesh. Este acontecimento saldou-se numa das minhas mais preciosas memórias de viagem. Como a farmacopeia árabe é secularmente reconhecida, a visita a uma farmácia na capital do Atlas afigurou-se-me como uma oportunidade de visitar um reduto inalterado do saber medieval. A dita fazia-se anunciar não por um néon cruciforme de cor verde, antes por uma série de sacos com cheios de pequenas folhas verdes, cuja única função é servir de presente oferecido pelo rapaz na altura de pedir a mão da sua noiva em casamento aos pais da moça.
A farmácia é composta por duas divisões: a mais exígua é a que tem o balcão de atendimento, com as paredes cobertas de prateleiras repletas de boiões e jarros cheios de produtos de mil cores. Na outra divisão existe, para além de muitas mais prateleiras e boiões, uma mesa de trabalho no centro da qual estão depositados os peneiros, os almofarizes, os pilões e demais boiões que servem à preparação das mistelas curativas a partir da miríade de panaceias de origem vegetal e mineral existente nos contentores vítreos. Estes não possuem rótulos e que eu visse, nada de literatura médica. O farmacêutico sabe bem o que existe dentro e cada boião. Lá é tudo natural, tudo manual, tudo sem receitas, muito pessoal.
Na farmácia portuguesa já começam a despontar os serviços informáticos de selecção de medicamentos a partir de computadores e de braços robóticos, mas ainda se podem assistir a algumas pérolas manufactureiras com verdadeiros truques de prestidigitador e à margem da informatização/ mecanização. Só o farmacêutico sabe onde está aquele medicamento com nome esquisito. Pede-se zolvirax e ele, pimba, abre a segunda gaveta e tira de lá o coelho; nós pedimos triticum e eles abrem a terceira porta a contar da esquerda e com a mão enfiada na primeira prateleira ainda perguntam "mas quer o 300 ou o 600?".
Mas a peça de resistência é o golpe do farmacêutico. Caixa do medicamento na mão, x-acto na outra, aponta o x-acto ao papel e rec-rec-rec-rec, quatro golpes sem furar a caixa, destaca com a ponta da lâmina o código de barras e cola-o à receita com uma tirinha de fita-cola. O golpe do farmacêutico é como a sombra do fotógrafo. Sem este primor técnico, é como ele não estivesse lá.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Abyssus Abyssum

Conheço um velho ditado que diz “o diabo fala todas as línguas”. Como a fiabilidade dos provérbios costuma ser de 99,97%, o que é que se passa com o demónio que nos filmes de exorcistas só fala em Latim? É por ser antigo? É para dar o cunho de alta cultura ao género? (Eu sei que dois dos meus três leitores vão dizer no seu tom apaneleirado “mas o diabo também fala americano”; pois fala, de contrário nenhum americano ia ver os filmes, porque eles não gostam das legendas). Preste-se atenção.
Os clássicos do exorcismo têm como personagens uma rapariga, um padre e, claro, o diabo. A história também é sempre a mesma: um padre é contactado pelo arciprestado para exorcizar uma jovem que apresenta comportamentos estranhos, como vomitar, querer foder com tudo o que mexe e falar línguas esquisitas. O padre ainda questiona se não será um caso de bulimia associado à natural descoberta da sexualidade adolescente, mas quando lhe dizem que ela fala latim, aí vai ele de Bíblia, estolas e água benta.
Já se perguntaram porque é que o diabo encarna sempre numa rapariga? Isto já vem da Idade Média, mas nada mais natural que um indivíduo querer-se meter dentro de uma jovem (o termo técnico é possuir). Além do mais que as raparigas são mais enfáticas na pornologia que normalmente acompanha a manifestação demoníaca. O palavrão sai da boca feminina com mais violência e dá mais força à história.
O padre constitui o elemento controverso da trama, já que se encontra em fase de teste da fé. O diabo encarregar-se-á de o tentar de diversas formas, mas lá para o fim destacar-se-á numa dissertação teológica com demónio, quando se apuravam as origens e razões da manifestação.
O diabo, por seu turno, é uma personagem algo esquizofrénica com a mania das grandezas, até pela plêiade de heterónimos que o costuma rodear. Ele é belzebu, demónio, rabudo, satã, satanás, mafarrico, demo, lúcifer, tinhoso, príncipe das trevas, burro preto e anticristo. Não se lhe costuma ver a aparência original, mas tudo depende do montante disponível na produção de efeitos especiais. Nos confrontos com o padre, trava-se de razões a partir da vitimização, pois foi Deus quem o traiu e “blábláblá que me explusou do Paraíso e-não-sei-que-mais”. Depois tem a tal coisada da língua. O filme Stigmata constitui uma rara excepção à generalidade do inglês/latim falado pelo rabudo, já que a jovem possuída escrevia em aramaico e depois falava em italiano (“Il mesangero non és importante”).
Se de alguma coisa serviria o género exorcista no cinema, já que o diabo fala todas as línguas, seria a promoção dos cerca de 5.000 idiomas e dialectos conhecidos no planeta, 96% dos quais se encontram à beira da extinção, como por exemplo o igbo, o inuktitut e o quirguiz. E se o mafarrico quer dar uma de Príncipe das Trevas aristocrata ao versar o latim, pelo menos que fale o latim antigo, para não cair no erro do Mel Gibson que empregou o latim restaurado n’ A Paixão de Cristo e pôs os soldados romanos a trocar os v’s pelos u’s.

Socorro-me aqui das palavras de Sto. Isidoro, quando aludia às origens das pestilências: “quando pro peccatis hominum plaga et correptio terris inicitur, tunc aliqua ex ausa, id est aut siccitatis aut caloris ui aut pluuiarum intemperantia, aera corrumpuntur. Sicque naturalis ordinis perturbata temperie, inficiuntur elementa, et fit corruptio aeris et aura pestilens” (De Rerum Natura, XXXIX, I) (Quando, devido aos pecados dos Homens, a fúria dos elementos se abate sobre a terra, seja pelos seguintes fenómenos, a seca, calor violento ou excesso de chuvas, a atmosfera corrompe-se e a natureza perturba-se no seu equilíbrio, produzindo-se a contaminação dos elementos, a corrupção do ar e criação da aura pestilencial). Nos dias de hoje, em que as secas, o calor extremo e as recentes chuvadas e nevões assolam a Europa, é de estranhar que estas e outras desgraças do mundo não sejam imputadas aos pecados dos Homens e à acção do Príncipe das Trevas.
E será certamente de natureza maligna a orquestração do pérfido decreto que ordena a retirada do Crucifixo das salas de aula e não se faça o mesmo com a Menorah, com o Corão e com o Buda, símbolos religiosos que teimam em enfeitar as paredes das escolas portuguesas. Foi para isto que se constitucionalizou a liberdade religiosa? Foi?
C.

Abyssus abyssum: atracção pelo abismo, o abismo atrai o abismo ou um mal nunca vem só.