sexta-feira, março 23, 2007

Uma Fábula dos Monumentos

Era uma vez um monumento, daqueles antigos e importantes, desses de granito suave, tão suave que os homens que o emparelhavam nas fiadas cada vez mais altas das paredes sentiram uma necessidade premente de moldá-lo em rendilhados, figurações e feitios, tantos e tão variados, que as peças de granito assim aglomeradas compunham um edifício monumental.
Veio um pombo, porque um monumento tão perfeitamente estético é o poiso mais procurado pelos pombos, pois eles são amantes da arte e da arquitectura.
Com esse pombo vieram mais pombos, que gostavam de ali nidificar e chocar os seus ovos, depois criados borrachos, que são os filhos dos pombos. Depressa o monumento se tornou uma cidade de pombos.
O problema é que como todos os bons amantes de arte, os pombos demonstram o seu amor babando-se, mas sob a forma de guano branco. Os monumentos são mais amados na razão directa da sua patente brancura.
Mas um dia os homens fartaram-se de limpar o guano dos pombos, alegando que todo aquele amor desabrido fazia mal ao monumento e instalaram um sistema de transmissão de ondas rádio, programados para uma frequência que causava mal estar aos pombos.
A colónia de pombos que habitava no monumento alvoroçou-se. Muitos arrulharam que a chegada do novo sistema era sinónimo de mudança para outro monumento e todos sabiam o quão difícil era encontrar outros monumentos bonitos desocupados. Os mais jovens e os que não tinham família para sustentar ainda levantaram vôo e tentaram a sorte em outros pombais monumentais; mas a maioria resolveu arriscar em continuar no monumento.
O sistema, logo que ligado, começou a afligir os pobres pombos: sofriam de desorientação e desiquilíbrio, de uma permanente sensação de azia e de dores de cabeça. Os centros de saúde dos pombos não chegavam para acolher tantos doentes e os culumborenários, médicos dos pombos, não tinham asas a medir. O caos tinha-se instalado no monumento.
E as companhias farmacêuticas dos pombos esfregavam as asas, pedindo ao Deus das pombas para que os homens instalassem mais destes sistemas nos outros monumentos.

quarta-feira, março 21, 2007

La Facade

Porque hoje é dia Mundial da Poesia (e da árvore, etc, etc) lanço aqui uma elegia de minha lavra subordinada, redundantemente, à tragédia. Um drama de faca e alguidar ocorrido numa qualquer pensão manhosa eivada de putas e de chatos, à razão de uma por cada mil, com acesso aos quartos por meio de um ascensor de portas de rede ao melhor estilo dos filmes harcore da escola francesa de meados dos anos setenta. Chamei-lhe e ainda chamo, La Facade.

La Facade

Clamei, manobrando o cutelo
Tragédia! nos exíguos quartos.
Tinto, o tapete de curto pêlo,
cinjo o cinto, pego nos sapatos.
A escada negra, rubro corrimão,
calam-se as putas, fogem os chatos,
o sangue escorrendo para o chão
pelas frinchas do soalho da pensão.

Do Cacete

Breve sinopse do percurso político d’el Rei D. Miguel, 30º monarca português, de cognome o Caceteiro.

Portugal, século XIX. Arriba rapazola do Brasil e desembarcando em Lisboa, não gosta nada (com sotaque carioca, né) que seu pai D. João VI se dê com os liberais. Resolve organizar um golpe a, Vila Francada, chegando a Comandante-Chefe do Exército. Depois, como o paizinho insistisse nas más companhias, organizou a Abrilada (naquele tempo, os golpes acabavam em –ada; depois veio o -ismo). Sequestra ministros, personalidades e o rei, argumentando que os maçons conspiravam contra a vida do obeso monarca, propondo-se defendê-lo e a salvar-lhe a vida. O pai, como recompensa, manda exilá-lo na Áustria. Volta passado alguns anos, para regente, manobrando, ardiloso, até que, apanhando-se por cima, pimba, pimba, aqui D’El Rei que sou Absoluto. De cacetada em cacetada (ou em portugueís do Brasiu, di cassêtchi em cassêtchi) perdeu a guerra civil contra o irmão e ingressou no exílio até ao fim da vida.

Sem cair naquele chavão da História que se repete, olho para trás e apetece dizer, Ah Paulo, se te chamasses Miguel, contava-te uma boa...

terça-feira, março 20, 2007

Mais Heróis

Actores, pintores, escultores, medicamentos e pessoas que estiveram algures na Arábia Saudita, cujos nomes acabam em hãn:

Ricardo Montalban

Paul Gaughin

Auguste Rodin

Gorosan

Artur Albarran

terça-feira, março 13, 2007

Nem de Propósito...

Saiu no Público esta notícia intitulada Embaixador alcoolizado e Nú:

A polícia de El Salvador só percebeu que aquele homem alcoolizado e nu - à excepção de alguns acessórios sado-maso - era o embaixador de Israel depois de lhe retirarem uma bola de borracha da boca, o que lhe permitiu falar, descreve a BBC. Na sequência do incidente embaraçoso, o embaixador Tzuriel Refael foi chamado de regresso a Israel e despertou no país o debate sobre o modo como são escolhidos os representantes diplomáticos...”

Quando chegar a Tel Aviv, o menino vai levar tau-tau...

segunda-feira, março 12, 2007

Portugueses na Literatura Estrangeira

Este post-scriptum remeteu-me para a imagem que os estrangeiros têm dos portugueses. Nos finais do séc. XIX Victor Hugo disse “se aos espanhóis tirarmos as qualidades, ficamos com os portugueses”. Lindo, não é? Como anda a cotação do povo luso na literatura mundial? Revê-se no Oliveira da Figueira de Les Aventures de Tintin? Ou no bitter Vasco Pulido Valente, o personagem português de Bilhete de Identidade da M. Filomena Mónica? De tempos a tempos, enfatizamos passagens da literatura mundial (garantidamente genuínas) onde pontuam personagens portugueses.

1. G. D. GOLD (EUA), Carter Vence o Diabo, p. 369-370:

Um dos quartos estava ocupado por Tony Alhino, que Griffin já tinha entrevistado uma vez. Alhino, de vinte e sete anos, português, dirigia o serviço de bebidas do Palace e tinha levado a Harding o seu último copo de água. Como o seu turno começava às quatro, não havia razão para estar no quarto quando Griffin bateu à porta. Mas estava. Era um homem moreno, com um bigode farto e as faces marcadas pela acne e, no momento em que viu Griffin, pôs um ar de culpado por todos os crimes cometidos no estado da Califórnia.
- Tony Alhino?
- He...
- Griffin, do Serviço Secreto. Já falámos uma vez.
- Macacos me mordam! – respondeu Alhino. Com o choque, falou em português mas, quando as palavras lhe saíram da boca, extraiu delas uma espécie de poder com um sorriso, como se uma segunda língua lhe proporcionasse uma vantagem sobre Griffin.
Griffin disse então a primeira coisa que lhe veio à cabeça – quero lá saber se os macacos te mordem.
Alhino ficou absolutamente mudo. Griffin decidiu pressionar.
- Ouve cá, amigo, vamos falar duma garrafa de vinho.
- Oh não! – Alhino sentou-se na cama. Enfiou a cara nas mãos. – Tenho oito irmãos e irmãs.O meu pai é barbeiro, mas está a ficar com os tremores.
- Onde está a garrafa de vinho?
- Não posso perder o emprego – gemeu ele.
Griffin tinha-se cruzado com vários tipos de choramingões na vida. Até sentia pena deste, no seu quartinho de janelas sujas. A cama era demasiado pequena para se sentar também, pelo que se acocorou e disse afavelmente: - É muita areia para a tua camioneta – era uma expressão popular que os adultos usavam quando diziam às crianças que alguma coisa excedia as suas capacidades.
- Onde é que aprendeu a falar português? – perguntou Alhino entre fungadelas.
- Com a minha ex-mulher – Esfregou o queixo. – Gostava de saber o que ela berrava quando me estava a atirar com cadeiras.

Está aqui tudo: a infelicidade do nome (mas antes Tony que Óscar), moreno e de bigode, profissional de hotelaria, família numerosa e grandes embrulhadas por causa da imortal garrafa de vinho... e preciosa alusão do americano à elegância e compostura da fêmea lusa nas discussões conjugais.

quinta-feira, março 08, 2007

Heróis

Grandes heróis cujos nomes terminam em hãn:


Conan

Rantanplan

Sandokan

Tarzan

Arsène Lupin

Tintin (pronunciado em francês)

quarta-feira, março 07, 2007

Da Hipocondria II

No seguimento do estudo de hipocondria apresentado no outro dia, eis uma outra variante.

# 3. Hipocondria itinerante: forma epidémica de hipocondria que se encontra um pouco por todo o lado, mas com mais expressão nos transportes públicos, táxis, autocarros e comboios. A descrição da sintomatologia incluem generosas alusões a todo o panteão católico, alternado com o rol de maleitas e de cirurgias por ela experimentadas.
A título de exemplo, relatarei
(como se fosse António Lobo Antunes) um diálogo verídico a que assisti entre dois passageiros do comboio.


Arrasta-se a composição pela linha, deixando a gare suja de fumo e cheiros a diesel e, percorridos alguns metros, já uma senhora se vai lamentando,
- Oh, isto aqui é a ponte?
metálica sobre um rio ancho, parado e azuláceo, olhando um homem dos seus quarenta que acusa a inquirição
- É
e logo a senhora desmancha num choradinho
(olho de relance o pato aprisionado naquela teia de lágrimas secas)
- Mas como é que eu falhei a estação, Meu Deus? É que eu tinha uma consulta no médico, ainda por cima tão ruim de marcar...
- E a senhora vem de longe?
- Venho desde S. Bento
(uma terra perdida nos montes, encruzilhada de caminhos, apeadeiro de diabos, daí o nome)
- de autocarro até Vila Nova, ali queria apanhar o expresso para a cidade, mas disseram-me que o comboio era mais rápido; como queria passar pelos correios e depois ia tirar sangue, quis aproveitar o chegar mais cedo, ainda por cima ando tão mal desta perna...
- A senhora não está bem?
a indignação crescendo na senhora
- Não estou bem? O senhor nem queira saber, já fui operada ao coração no estrangeiro, mas deram-me uma transfusão de sangue que não era da minha qualidade e fiquei paralisada do lado esquerdo
(a qualidade dos sangues e da saúde do país afinal está ao nível da média europeia, que a velha não tem cara de ser apologista do sistema de saúde cubano)
- e depois até me tiraram a vesícula e ganhei uma úlcera no estômago, enfim, fora as drogas que tenho de tomar para isto tudo...
(o rapaz vai sorrindo, como se os sorrisos ou a pena curassem a velha)
- e este meu joelho que não deve estar nada bem...
o comboio pára, vou saindo e pensando
(fora as drogas, ainda bem que não me puseram a médico)

terça-feira, março 06, 2007

Diálogo Hipocondríaco

Quinta-Feira, 9h45 da manhã; duas senhoras aguardam na sala de espera do Centro de Saúde da área de residência. Uma delas está visivelmente combalida, dando longos suspiros de quando em vez, ao passo que a outra, recostada na cadeira, vai passando a mão pela cabeça. De repente, um suspiro mais prolongado quase terminando em ai faz com que a senhora da mão na cabeça interpele a dos suspiros.

Senhora com a mão na cabeça
(Com pena) Está cheia de dores, não está?

Senhora que suspira
Ai, minha senhora, (virando a cabeça para o lado) nem queira saber! Estou aqui que não me aguento...

Senhora com a mão na cabeça
É falta de ar? Se calhar são gases...

Senhora que suspira
Ah, se fosse isso... Tenho uma dor nesta perna (vai passando a mão pelo lado esquerdo do corpo) que me sobe por este lado até, com sua licença, ao rabo, que me tem toda apanhadinha; e de vez em quando dão-me umas cólicas terríveis, (respira duas vezes, meio ofegante ) derivadas de um problema que eu tive na vesícula, que eu já tirei numa operação que me fez estar no hospital quatro semanas; olhe, de estar tanto tempo deitada comecei a ganhar problemas de coluna e uma ciática que me apanha este lado todo (esfrega a perna direita), olhe parece que me estão a dar facadas na coxa.

Senhora com a mão na cabeça
Também já me aconteceu isso, (acenando afirmativamente com a cabeça, para logo a amparar com a mão), sei bem do que fala. São umas dores que não se aguenta...

Senhora que suspira
Pois. Mas o pior é que há dois meses começaram a aparecer-me umas manchas na pele, que me dão uma comichão tamanha, que agora ando a queimá-las com um produto; é um tratamento que me dói muito, olhe, até parece (faz um esgar de horror) que me estão a esfolar com um alicate.

Senhora com a mão na cabeça
Jesus, Virgem Santíssima. (Estica-se em direcção à outra em jeito de confidência) Olhe que há aqui um médico da pele que é muito jeitoso, já me curou duas vezes umas impigens que ganhei na cara por causa de umas lulas estragadas que comi certa vez.

Senhora que suspira
E vem aqui fazer o tratamento, é?

Senhora com a mão na cabeça
Não. (leva as mãos à cabeça que inclina para trás, ao mesmo tempo que cerra os olhos) Tenho uma enxaqueca que nem consigo abrir os olhos. É do fígado. Comi ontem um peixe cozido com grelos que me fez uma azia... tenho o ventre todo afrontado.

Senhora que suspira
(esboçando um olhar compassivo) Ah, coitada.

Senhora com enxaqueca
E é um sofrimento... (começa a passar as mãos em círculo pelo ventre) apanha-me esta parte toda... é que eu não posso comer grelos, sabe? Mas resolvi cozer um peixinho que eu comprei lá em baixo nas peixeiras do mercado, até mo limparam, veja bem, e depois descasquei umas batatinhas, juntei uma cebolinha e uma cenoura cortada ao comprido, e tinha lá um molhinho de grelos que a minha irmã trouxe do quintal dela, não o quis deitar fora e dá sempre um gostinho amargoso à comida (tossica ligeiramente, depois suspira)... depois com um fiozinho de azeite, que bem que estava...

Senhora que suspira
Pois é uma comidinha boa, lá isso...

Senhora com enxaqueca
E à tardinha comecei a sentir uma revolução, olhe, umas dores, pensei logo, lá está a vesícula outras vez, com uma azia, parecia que tinha engolido um braseiro... Ai (olhando em redor) e nunca mais somos atendidas...

Senhora que suspira
Qual é o seu lugar de espera?

Senhora com enxaqueca
(já mais vivaça) É o sete, mas a semana passada fui o doze e o quatro e na outra semana o desassete.

Senhora que suspira
(em tom meio enfadado) Pois eu já aqui esperei tantas vezes e já tive tantos números diferentes, que até me deu para preencher um boletim completo do Euromilhões!

segunda-feira, março 05, 2007

Da Hipocondria

Numa das minhas recentes passagens pelo hospital, identifiquei as duas formas de hipocondria mais frequentes dos corredores compridos e assépticos onde as pessoas por vezes aguardam, por outras adiam, la muerte.

#1. Hipocondria clínica: a forma mais comum de hipocondria, muito vulgar em senhoras que, em qualquer equipamento do Serviço Nacional de Saúde, procuram sentar-se em frente de outras senhoras, visando interpelar quem lhe está defronte. Primeiro fica em silêncio e se ninguém puxa a conversa, solta longos suspiros e fungados para se fazer notar, procurando os outros com o olhar; inquire então alguém dos presentes (normalmente quem lhe retribui a atenção) porque está ali e antes que termine de dizer “vim fazer umas análises”, já está a hipocondríaca clínica a discorrer longamente sobre as doenças que a infectam desde que o marido morreu. São o pesadelo dos clínicos gerais, porque se fazem acompanhar sempre e ostentam com orgulho as radiografias, ressonâncias e demais exames que atestam os variados males, caso dos bicos de papagaio e mal-estar geral em todo o esqueleto, artrites, artroses e tendinites, hérnias discais e inguinais, estiramentos e roturas, pé-de-atleta e grande variedade de fungos.

#2. Hipocondria culinária: género de patologia patente nos pacientes que infestam os Serviços de Urgência sem motivos emergentes, daí conhecerem todo o pessoal hospitalar, do Chefe de Serviço ao porteiro, assim como todos os meandros dos hospitais e os seus serviços. Surpreende os incautos pacientes que desesperam por um raio X ou umas análises com os seus próprios exames, “olhe que devem ser gases” para as dores de barriga, ou “se calhar foi um jeito que deu à coluna” quando a dor é no pescoço, porque já lhe aconteceu algo semelhante.
Esta forma de hipocondria associa a sintomatologia do quadro clínico do qual padece com a confecção de comida, ao mesmo tempo que acena aos interlocutores com o relatório de análises ao sangue com os valores três vezes mais alto que o normal. “Olhe que me deu umas dores aqui nos intestinos, Senhor Doutor, se calhar foi de um arroz de sardinhas que fiz ontem, sabe, refoguei uma cebolinha com uns pimentos e uma folhinha de louro, depois ajeitei três sardinhas gordas...” e segue a conferência perante o olhar atónico do clínico, despejando ainda uma receita de cabrito assado no forno e uma caldeirada de sete peixes.
Queixa-se de mal-estar em todo o sistema digestivo, azias, úlceras e cólicas, gases e consequentes problemas respiratórios, cálculos hepáticos, pedras na vesícula e em ambos os rins, prisão de ventre alternada com diarreia, obesidade, sangue gordo, enxaquecas e outras encefaleias, hipertiroidismo e outros quadros com sufixação em -ismo, começando em meteorismo e acabando no autoclismo.