domingo, janeiro 06, 2008

A Peça

Fui com o carro à oficina, para mudar filtros e "os fluídos", a designação que agora preenche a linha da factura onde antes se podia ler "mudar o óleo". É que "mudar o óleo" tem hoje outros significados... e os cinco algarismos seguidos do sinal do euro no enfiamento da linha "mão-de-obra" são semelhantes aos que se podem ver muitas vezes nas facturas dos hospitais a seguir à linha "honorários do anestesista, do cirurgião e das enfermeiras instrumentistas".
Mecânico
Pronto, amigo
(Sim, eu tenho um mecânico que é meu amigo, apesar da contradição e de ele me tratar por você)

Eu

E o carro precisa de mais alguma coisa?

Mecânico
Agora só tem de voltar cá daqui a dez mil quilómetros.
(E esta forma de eles medirem o tempo, em quilómetros, Diz-me as horas, por favor, Concerteza, são seis mil setecentos e trinta e quatro quilómetros e duzentos metros, ou Faltam três mil duzentos e sessenta e cinco quilómetros e oitocentos metros para os dez mil)
- O carro está óptimo, não se preocupe. Vê-se que está bem cuidado.

Eu
- Muito bem, daqui a dez mil quilómetros eu passo por cá.

Mecânico
- É que nem calcula os assassinos que aqui vêm parar... olhe, aquele Golf, por exemplo, (aponta para um carro preto) está todo assassinado.

Eu
- Imagino...

Mecânico
- É de um miúdo, anda para aí a varrer rotundas, só gosta de acção. Desmancha o carro todo e no fim o avôzinho passa cá e paga a despesa.

Eu
- Antes assim, ao menos vai ganhando uns cobres à conta do piloto.

Mecânico
- Mas não é isso que está em causa. É que parte o carro todo e vai-se chegar a um ponto em que não há reparação possível. (Ah, a consciência do pirata que não suporta ver os barcos das presas a afundar, quando poderiam dar mais uma ou duas voltas...)

- Desta vez foi um eixo traseiro. A semana passada... (dirigindo-se para uma banca no canto da oficina) ...venha cá ver! (abre uma saca de plástico e espreito lá para dentro, onde jaz um ferro cilíndrico e comprido quebrado em dois) Que me diz?

Eu
Não pode ser!

Mecânico
Ai pode, pode!!!

Eu
Mas como é possível?

Mecânico
É tramado não é?

Eu
Como é que ele fez isto?

Mecânico
A varrer!

Eu
Mas isto não parte assim!

Mecânico
Pois não parte! Mas esta partiu.

Eu
Se não visse, não acreditava.

Mecânico
Nem eu. Mas é verdade.

Saí da oficina a pensar na tristeza de saber que mesmo vivendo mais duzentos anos, será impossível experimentar novamente o choque proporcionado pela visão de uma peça inquebrável afinal quebrada, da qual eu apenas sei que se situa dentro do automóvel, algures entre o pára-choques dianteiro e o pára-choques traseiro.

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