quarta-feira, junho 22, 2005

Manta de Retalhos IX

prévia manta Mannanan

Levantei-me e tentei interromper a refeição da rapariga com um chavão de engate micro-machista, mas uma mão pousou no meu ombro. Voltei-me e ali estava ele, o tucano, agora de pistola em punho. «Foda-se», pensei, «a diplomacia nunca foi o meu forte. E agora?». Perante aquele quadro de quase tragédia, levei instintivamente a mão ao peito e atirei um defensivo
- Óh amigo, desculpe-me lá o meu comportamento; é que sempre ocorre qualquer coisa de transcendental quando encontro a minha ex-sogra.
- O quê, o senhor já foi parente daquele pote de gelatina verde? É de tomates, caralho! Se a minha sogra fosse daquele calibre, eu andava era por aí aos tiros – e dizendo isto recolheu o ferro no interior do casaco - Esqueçamos esta lamentável cena. Era para onde?
- Agradeço a sua solidariedade. Mas já não vou chegar a tempo, pois tinha de estar dentro de 15 minutos no centro, e frente ao Banco de Portugal!
- É difícil mas não impossível. A correr bem estamos lá em 14 minutos. Correu de volta ao carro e dali a pouco, enquanto eu fiquei pregado ao chão perante a reviravolta dos acontecimentos, atravessou o jardim a alta velocidade
- Vamos lá - gritou ele.
Sentei-me ao lado do Pires, assim era o nome legível no cartãozinho da Antral colocado no tablier e ainda com a porta aberta ele deitou a máquina a rugir pela vereda do parque até às fileiras de tráfego matinal. O rádio rangia a espaços "táxi à Boavista" táxi à Fernão de Magalhães", enquanto o Pires cortava o silêncio com os seus comentários próprios de pendura de rally
- Filho da puta desvia-te! Já estás a roer os dentes, corno do caralho? Não é nada contigo, óh paneleiro de merda" - e outras frases que tal. Depois atirou
- Óh doutor, você devia ter uma mulher do caralho, para ter alinhado com uma sogra daquelas – enquanto olhava para mim com ar de gozo. Sorri perante o tratamento dado à velha, mas só me saiu
- A filha ainda era pior que a mãe, só que sem os cortinados.
Rimos os dois. Depois seguramos firmemente o que pudemos agarrar porque quase nos enfaixávamos na traseira de um autocarro que saiu repentinamente da paragem. Nova colecção de impropérios. Arrancou ainda e parou 150 metros mais abaixo em frente ao Banco de Portugal.
- Cá estamos, chefe! Trabalha no banco, é?
- Não. O meu destino é ali para trás. Tome lá ... fique com a diferença, pela simpatia e pelo bom trabalho – estendi-lhe uma nota de cinquenta, ao que ele retorquiu, sorrindo
- Ninguém vai acreditar que fiz esta corrida em doze minutos e quarenta e sete segundos. Tome o meu cartão ... Para quando precisar deste tipo de serviços e outros que tal. Acenou-me e zarpou com uma chiadeira de pneus. O cartão era um rectângulo de papel onde foi escrito à mão "Pires", seguido de um número de telefone de cabine. «Mau», pensei.
Corri para a porta do meu destino e trepei as escadas três a três. Rompi pela porta do escritório e sorri para a secretária
- Olá – disse-me ela com aquele sorriso radioso de trás de um gloss discreto que me partia todo – estão à sua espera. «Mau», voltei eu a pensar.
Entrei na sala de reuniões e dirigi-me rapidamente ao topo da mesa ovalada. Lá já se encontrava o velho Borges
- Meu caro, desta vez chegou a horas – apertava-me a mão com aquela solidez de homem sossegado, como se nos envolvesse o corpo com aquele aperto de mão - Nada de violências, presumo?
- Hoje, felizmente, nada, senhor Borges – apertava-me a mão com aquela solidez de homem sossegado, como que com a mão nos envolvesse o corpo - Tudo normal.
- Muito bem – sorriu ele cúmplice. E olhando a plateia - Senhores, este é o especialista de que vos falei. É nele que deposito toda a confiança quando as coisas se tornam problemáticas na certeza que não evoluem para catástrofes.
Olhei em volta e dei conta de uma sala cheia de homens e mulheres, alguns de meia-idade, outros mais velhos, um ou outro na casa dos trinta. Todos estavam de olhos pregados em mim. «Financeiros?» pensei «Nã. Seguradoras». O velho Borges confirmava os meus pensamentos
- O segurado, caros amigos, está neste momento mais seguro.
Eu sabia que o segurado só me seria revelado no final, mas comportei-me como se tivesse sido eu a parir o segurado. Sentei-me ao lado do Borges, e comecei a anuir com ares de entendido cada afirmação que o velho disparava, ao que me apercebi, para tranquilizar aquela dezena de preocupados e assustados mediadores (era assim que eu gostava de lhes chamar).
- Senhores, nós garantimos toda a segurança e o contorno de possíveis obstáculos que se possam levantar no nosso caminho. É por isso que nos rodeamos dos melhores especialistas do género – olhando para mim paternalmente, ao que eu acenei que não e encolhia os ombros humildemente – para que tudo corra pelo melhor.
- Portanto, Senhor Borges – gralhou um homenzinho enfezado lá do fundo – garante a segurança total, é isso?
- Bem, convenhamos que é difícil das garantias de segurança a seguradoras – todos riram nervosos, e o velho Borges volveu falando mais baixo e mais solene – mas todos vocês conhecem a nossa casa à dezenas de anos. Não vamos facilitar.
Seguiu-se um silêncio pensativo. Todos estavam inseguros eu não sabia por quê. Eu estava ainda arredado do assunto, mas não estava a gostar deste pânico aparente. «Grande produto (ou caro) para que haja uma associação de seguradoras». Só estava a gostar da quarentona enxuta sentada à minha frente, bem arreada, que eu já imaginava em lingerie preta, «sim preta, porque a pele é clarinha e ela não tem perfil para o vermelho nem idade para as florzinhas», assim, a pedir-me com o olhar «mostra-me o que é viver», quando uma voz familiar castrou os meus pensamentos
- E que garantias nos dá o seu especialista? – isto era comigo. Icei-me na cadeira e voltei-me para o local de onde saiu aquela voz bem feminina e colocada, amistosa mas ao mesmo tempo demasiado segura e até trocista que eu já havia ouvido algures – é que nós raramente trabalhamos com este tipo de serviços e, muito sinceramente, o nosso cliente é muito avesso a este tipo de contratações, digamos ... inesperadas.
- Minha cara – volveu o Borges, enquanto eu fazia um esforço por tentar encontrar a mulher, mas um tipo germânico com 140 quilos ocultava a fonte da facada melodiosa – penso que o nosso homem poderá acalmar os vossos receios.
Levantei-me e então percebi a razão da troça na voz. A cavalona da noite anterior estava ali, sentada com olhos de imenso gozo, fitando-me muito divertida. Só me passava pela cabeça como era possível ela ter chegado ali primeiro que eu, se a havia deixado semi-nua em minha casa. O meu passeio no parque não fora assim tão extenso.
- Ora bem, um bom dia para todos comecei com voz segura - Para aqueles que não conhecem os nossos serviços convido-os a visitarem o nosso portfolio virtual – estendi um maço de cartões que tirei do bolso, juntamente com o mouleskine. Abri-o, calmamente, para mostrar à boazona que não acusei o toque e à quarentona que se preparasse que a seguir era ela – Em relação ao nosso assunto, garanto-vos que tudo está tratado para que o produto saia às tantas horas e chegue às tantas horas. Os locais de entrada e saída não são os ideais, mas cá nos arranjaremos. Podem fazer descansar os vossos clientes, porque vamos tratar do assunto de uma forma capaz. E só mais uma coisa - aqui estava a falar para a cavalona - nunca falhamos, não vai ser agora, por mais extravagante que seja o serviço, que vamos esmorecer ou subestimar a confiança que nos é imputada.
Sentei-me e o velho Borges sorria com deleite. Eu sabia porquê: «grande lata a deste filho da puta», devia estar ele a pensar «não faz a puta da mínima ideia do que quer que seja o trabalho, mas conseguiu acalmar todos estes cabrões».
- Bem - disse ele – acho que mais conversa é inútil. Não vos consigo dar mais garantias. Ou é ou não é.
E com isto terminou a reunião, porque todos disseram "é". Formaram-se grupos de conversação e só eu me mantive sentado a cofiar os meus pensamentos à espera da bomba, enquanto que dois dos meus cartões voltaram a deslizar pelo tampo da mesa. Um deles tinha um número de telefone e estava meio perfumado com um misto de lingerie preta e água de flores suavíssima; o outro só dizia "Tenho o teu número. Com que então nunca falhas? Pago para ver. PS: adorei a tua casa". Guardei-os juntamente com o cartão do Pires.
- A casa não é minha – disse por entre os dentes cerrados – é do meu pai.
Sairam todos e fiquei só com o Borges
- Caríssimo – sorria ele de alegria incontida – se aceitasses ser meu sócio, ninguém nos parava. Eu até pensei «este bastardo não sabe do que se trata mas já se atirou de cabeça» e é por isso que eu te admiro. Para ti não há contrariedades. E as gajas? Boas, hã? Bom trabalho!
- Sabe bem que eu até fazia isto de graça, mas infelizmente a ética não mo permite – Ele soltou um gritinho de riso, mas eu continuei - Vamos lá a saber. O que é o segurado desta vez? O tesouro do barco pirata? Um quadro raro descoberto fortuitamente? Um quilo de diamantes?
- Quase – disse ele, ao mesmo tempo que o sorriso desaparecia num cenho carregado - É uma pessoa.

quarta-feira, junho 15, 2005

Da Carne e da Salga

Depois de um ligeiro périplo por outras latitudes, voltamos à origem e à nossa salmoura. Depósito de carnes, casa de sal, nada mais saboroso do que fluir nas ramificações que o nacl (cloreto de sódio) nos transporta. O fiel amigo é mais saboroso quando seco ao sol depois da salga; requintado é o sabor das lágrimas, salgado, como é salgado o mar. Diz-se insossa da comida que não o tem, assim como das pessoas que não tem personalidade. E expressões como o sal da vida, o sal da terra?
O Sal. Tão valioso na antiguidade que os soldados eram pagos ao tempo da República Romana com quantidades dele (daí o termo salarium, salário), em que a maior parte da culinária dita de luxo entre os romanos envolvia uma pasta de peixe com sal, o garum ("ó Calpúrnia filha, ratazana frita recheada aos olhos de urso ainda vai, mas nunca garum") e o vieram procurar longe, na parte ocidental da Península Ibérica. O sal, ingrediente primaz da salmoura. No entanto, como tudo o que sabe bem é prejudicial à saúde, também o sal não é excepção: o consumo excessivo provoca problemas cardio-vasculares, entre outras maleitas. Perigo maior é a relação do sal com a carne, seja uma florzinha ou uns grãozinhos, pois apesar do apuro do sabor, é propício a enfermar o corpo.
Porquê esta repentina moralização? É que surgiu recentemente um lenitivo para esta associação tal malfazeja: já repararam nos outdoors da Calzadonia? Já viram aquelas carnes ali à vista da gente, com aquela camadinha de sal do bom, daquele que sai do mar? Meus senhores, têm de concordar comigo, bendito seja o pai que num feliz lampejo convenceu a mãe a produzir tamanho naco. Se os restaurantes tivessem publicidade destas, os talhos estavam sempre vazios!!!
Para os problemas e hipertensão arterial, uma menina da Calzadonia por dia, para exercitar ou simplesmente saborear. Certamente que não vai fazer caretas a este xarope!
Um derradeiro apontamento ... era de tomates alguém mandar um biqueiro na boca do Ronaldo (do Madrid), para assim o dito popular "dá Deus nozes a quem não tem dentes" fazer todo o sentido.

Croius

quinta-feira, junho 09, 2005

Onde Param as Séries de Nossa Juventude?

Ah, a transição entre a infância e a adolescência. Que belas recordações dos tempos em que o Dr. Croivs vivia excitado 24 sobre 24, época de ouro, em que até as calcinhas da Mónica e da Magali (sim aquelas com aquele fino debruado de renda a aparecer por debaixo do vestidinho, respectivamente vermelho e amarelo) eram postas ao serviço da descoberta da virilidade. Foi com surpresa que o Dr. Croivs reviveu aquele período da sua existência quando acompanhou o aparecimento no canal RTP Memória de uma série crucial de sua infância, Os Amigos de Gaspar. Acompanhou com deleite o notável desempenho daquelas marionetas desengonçadas, as tropelias do sempre boquiaberto Gaspar, das ursidades do Farturas, os trejeitos rotativos daquele repolho com olhos chamado Manjerico (sóio móio tóio póio gaspáio), a amizade paternalista da Lina e as ocorrências estapafúrdias do Guarda Seródio, o guarda do parque com xotaque de vijeue, entre outros.
Senhores, aquilo sim, eram tempos. O Dr. Croivs recorda agora séries de culto com baixo índice de violência como A Árvore dos Patafúrdios, verdadeiro manifesto anarquista em que toda a passarada queria mandar no pinheiro, mas ninguém detinha o poder (ainda para mais com a música do inconfundível apolítico Sérgio Godinho); a pachachada futurista japonesa pós inverno nuclear conhecida como Conan, o Rapaz do Futuro, uma espécie híbrida de Incrível Hulk e Heidi que andou 73 episódios à procura do avô que no final se revela ser o Frankenstein; ou o Era uma Vez no Espaço (depois repetido à exaustão por outras Era Uma Vez: A Vida e Era Uma Vez: O Homem) com a música do genérico mais espectacular alguma vez lavrada e cantada pelo imortal Paulo de Carvalho, música que se tornou, para o Dr. Croivs o E Depois do Adeus das séries juvenis (Lá em cima/ há planícies sem fim/ há cometas, que parecem correr/ há o Sol e a vida a nascer/ vou-vos contar uma história/ Era uma vez no Espaço/Lálálálálálá – Por favor, alguém me diga onde posso adquirir uma cópia).
E que dizer da Volta ao Mundo em 80 dias com a qualidade animal da mesma produtora espanhola que depois assinou essa glória maior chamado D’Artacão e os Três Moscãoteiros? Tudo para lembrar, com os olhos toldados por um nevoeiro fininho e nostalgias peludas no peito, que naquele tempo é que era. E o Verano Azul? Que saudades daquele genérico assobiado, enquanto a trupe de adolescentes montados nas suas biclas rebocavam o gordinho Piranha. Ah, Patti, foste (nunca havia sido dito) o primeiro amor televisivo do Dr. Croivs! Bateste aos pontos a Princesa Leia. E o Chanquete, o velho filósofo existencialista metido a Sartre que vivia naquele barco naufragado na praia? Liiiiiiiiiiiiindo. E quando apareceu aquele gajo parecido com o Sandokan, que toda a gente pensava que ele era um ladrão, mas no fim ele salva a Laura de morrer afogada? E não era ladrão, era fugitivo de uma clínica de saúde mental! Oh, como diz a Maria de Vasconcelos, é Maravilhoso!!!! É por estas e as outras que os espanhóis têm a Zara, El Corte Inglês e a ETA e nós só temos os Morangos com Açúcar e o Tino de Rãs*.
Ainda no outro dia ao passar por Castela, o Dr. Croivs folheou uma das revistas Del Corazón e lá havia uma reportagem sobre o puto (que agora já não o é), o Piranha que, qual Drew Barrimore depois do sucesso/ abandono sequente ao ET, se meteu fundo nas dependências. Isto remete as equações do Dr. Croivs para outro nível: o que será feito de Gaspar e seus amigos? Será que eles têm vivências opostas ao sonhado pela nossa infância? Conjecturemos.
O Gaspar era um tipo atinado. Talvez tenha seguido uma carreira séria, estilo advogado. Bem, algo mais sério que advogado. Talvez juiz ou médico. Ou não e agora está a arrumar carros no estacionamento do Hospital S. João. Entre as entradas e saídas no Porto Feliz (plano do Rui Rio para retirar os arrumadores/ toxicodependentes das ruas, aliás, reconhecido por todos como um sucesso transcendente), limpa uns auto-rádios na zona da Alfândega para pagar a dose p’ra ele mais o Manjerico. Este, das duas, uma: ou anda enterradinho com o amiguinho Gaspáio na branca ou atinou cedo, licenciando-se em Terapia da Fala. Neste caso deixou aqueles tiques ora à esquerda, ora à direita, para incluir acenos acima e abaixo, estilo compasso quaternário.
O Farturas, essa instituição de inteligência, essa sumidade bacôca, tirou Engenharia, é claro. Mascôto como ele era, só poderia ser Engenheiro Civil nas obras do Metro. Quanto à Lina, bem ela era boa moça, do tipo mãe solteira aos 17; provavelmente tirou o 12º à noite, com três filhos pequenos; depois licenciou-se em Educação de Infância e agora é a Educadora Adelina no Infantário da Pasteleira, ali mesmo ao pé de Serralves, onde desfruta da Arte Contemporânea e dos jardins, com os seus filhos adolescentes e bons alunos.
E o Guarda Seródio, fiscal intransigente do Jardim? Nem tudo é miséria no Porto, senhores. O Guarda Seródio reformou-se com a patente de Chefe, «eventualmente e inopinadamente ao cabo de 4 anos de cherbicho entre a juventude prevaricadora e contestatária das normas inerentes ao bom funchionamento do jardim ao qual prejidia». Agora abriga os dois gatos que vadiavam pelo jardim e vive da pensão vitalícia, alternando a existência entre a alimentação de pombos com migalhas de pão da véspera com as suecadas na companhia mal-cheirosa de outros aposentados da Função Pública. Rapou o farfalhudo bigode para parecer mais novo.
E Você, tem-los visto?
Dr. C

* Aqui é clara a inclusão de um terrorista português, porque não sabemos onde anda o Manuel Subtil, o perigoso raptor de wc’s da RTP.

As Runas de Glicosury – A Gneisse do Corvo


Tal como prometido no post Rudimentos para a Giza de uma Saga, o Dr. Croivs lança aqui um esquiço sinóptico para uma saga, para rebentar de vez com a gonorreia mental que grassa nas cabeças das alimárias conotadas com uma certa literatura light, chamada de aventuras.
Primeiro, o lugar à justificação metodológica. A saga deverá ter forçosamente um encadeamento próprio, quase em verso. De uma assentada aproximamo-nos das sagas de classe mundial (o JRR Tolkien volta e meia metia a meio da narrativa umas cantigas estilo adepto de clube inglês com os copos a cantar alegremente: fomos enormes/ fomos grandes/ e só é pena/ não ter aqui umas sandes, apesar da equipa estar a ser empalada por 6-0) e promovemos a cultura interna, que é tão ou mais que as estrangeiras, qual obra do Vicente ou do Camões; a língagem deverá ser do tempo das Cantigas de Amigo (Ai Flores, Ai Flores do Verde Pino, Se tendes Novas de meu Amigo, Ai Deus e o é, que anda por aí o meu marido).
O Dr. Croivs investigou e seleccionou algumas das nossas cantigas de gesta e romanceiro, tomando a liberdade de escolher um dos seus preferidos, chamado D. Beltrão de Roncesvales, para servir de exemplo, dada a elegância e a riqueza semântica patente na romance (retirado de J. Leite de Vasconcelos, Romanceiro Português, vol. I, Coimbra, 1960, n.º 17):

Três voltas dei ao castelo – sem achar por d’onde antrar
Cavaleiro d’armas brancas – viste-lo por qui passar
Eu vi-o morto n’areia – com a cabeça no juncal
Três feridas tinha no corpo – todas três eram mortal
Por hua lh’entrava o sol – pela outra o luar
Pela mais pequena de todas – um gavião a voar
Com as asas mui abertas – sem las ensanguentar
Três voltas dei ao castelo – sem achar por d’onde antrar

Catita, hã? Pois bem, a nossa saga tem de ter os ingredientes apontados por nós naquela explicação, a saber paisagem lacustres, montanhosas, turfeiras e tundra de neves eternas; depois o cavaleiro versátil, o monge, mago ou feiticeira, os mercenários e o trapalhão, a demanda, qualquer coisada mágica e as pedras. Vamos lá lavrar uma sinopse para encher as contracapas da publicação:

Do alto daquela montanha – hum cavaleiro escuta ao longe
As terras que de lá se miram – despois de hablar cum monge
E lh’o monge dizia rezando – c’as pedras do Corvo cantavam
Dizeres antigos de curvas – e los rabiscos significavam
Hua ‘stória de males de mundo – antes dos tempos começarem
Dos dias d’ hoje chegarem - Os ventos de sul soprarem
Cum neño foi leixado – em terras do longe abandonado
Seu pai senhor arreliado – por seu cú ter lo sinal tatuado

Eh cavaleiro que a pedra fala – Lh’o monge dirá mais à frente
Num neño no frio arredado – Depois c’os Lhobos dormirá quente
E pr’ hua lhoba será creado – depois ó convento noviciado
E lhas lenguas e letras aprenderá – porém sem ser ordenado
Lho Cavaleiro do mosteiro – na viaje conhecerá pr’a peleija
Muy valentes mercenários – hu moro, hu pirata, hua crangueja
Mai’lo porqueiro do Castelo – qu’é ladrão de fama antiga
Trapalhão ensarilhado – c’o a cara de lumbriga

Lhos parceiros em demandas – pois lhó Reyno aventarão
Que seu padre há muito perdeu – pró feiticeiro e tirano irmão
C’a justicia voltará à terra – d’onde partiu ainda neño
À sepultura do pai arrojará – pois foi morto por lo veneno
Hua ‘spada vam achar – pr’a banda do lago merino
Mais ela irá a matar – lho tio tirano assassino
Chegará o fim da ‘stória - C’o século mesmo à beira
E todos dirão enfim - Samicas de Caganeira

Terrorismo Cultural em Tampos de Mesa

Eu tinha um projecto antigo. Durante muito tempo pensei em efectuar um levantamento dos diferentes "dizeres", que é como quem diz "slogans de wc", para tentar averiguar profissionalmente da verborreia do nosso povo e da riqueza de nossa literatura de intervenção, essa lide tão profunda e cara ás nossas gentes, desde que o Camões encetou a escrita de sonetos nas portas das retretes de Ceuta (Vai Leanor fermosa pela verdura/ para me trincar a fruta madura). Até pensei em chamar-lhe epigrafia de porta de retrete, mas isso é mais do ramo da História, e não me interessa. Veremos como no final o mundo dá voltas e mais voltas.
Ontem deparei-me com um facto que me levou a ponderar e a meditar naquele fenómeno: estava a vasculhar uns incunábulos na Biblioteca Pública, quando, naquelas esperas pornográficas debaixo do olhar omnipresente de D. Pedro, o Brazuca, reparei que alguém havia escrito no tampo uma parte de um jogo infantil (vou escrever ipsis verbis, para não se perder a riqueza dos termos na minha versão):
Um aviaozinho militar
Atirou uma bomba ao ar
A que terra foi parar?

Sorri, perante esta brusca memória da juventude; só depois reparei que aquele tampo era extremamente rico de múltiplas expressões e dizeres, num claro horror ao vazio, facto que demonstra:
1º - as pessoas têm uma grande riqueza literária e querem demonstrá-la em todo o lado;
2º - no fundo as pessoas adoram expressar-se, nem que seja sob a forma de falos ou vernáculas piças;
3º - na Biblioteca Pública espera-se de caralho.
Ora bem, ele há dizeres para todos os gostos. Há os de tipo amoroso/ sentimental, de onde seleccionamos esta pérola
Puz-me a contar as estrelas
contei duzentas e doze
Com as duas dos teus olhos
São duzentas e catorze
há as de carácter político/ religioso
Hooligans Rebeira
Só os + fortes sobrevivem
Nós somos eternos
Ou
The crownless again shall be king
(é bom saber que Shakespeare voltou às bibliotecas portuguesas),
ou até um rebuscado e algo desusado
One ring to rule them all
One ring to find them
One ring to bring them all
And in darkness bind them
In the and of Mordor
Where the shadows lie.

Senhores, toda a gente estará familiarizada ou até já praticou este tipo de intervenção sobre esse nobre suporte da literatura pública, o tampo de mesa. Eu também já o fiz na adolescência, confesso-o, mas nunca, repito, nunca, cometi o erro estúpido verificado no lugar 14 da saga G da Biblioteca Pública. É que alguns dos terroristas culturais assinam as suas peças. Escolhi três exemplos de arakiri artístico: Sílvia Madureira 17-06-96, um clássico, portanto; depois uma preciosidade, já que é um autógrafo duplo, pois as companheiras ocupavam lugares vizinhos, podendo-se ler entre duas setas a apontar para o 13 e o 14, Ana e Verónica Estivemos aqui 19-05-2005, um grafitti ainda a cheirar a tinta nova.
Ora, não é preciso ser nenhum génio para perceber que se os funcionários da biblioteca fossem maníacos obsessivos tipo inspector Closeau, ferravam os prevaricadores em dois tempos. Bastava comparar-se a data do grafitti com o livro de ponto da biblioteca e não era difícil perscrutar uma Ana e uma Verónica que no dia 19 se sentaram nos lugares 13 e 14; tirava-se o número do BI que as meninas obrigatoriamente forneceram e pimba, olá terroristas, venham lixar e dar três mãos de verniz nas 62 mesas da sala G.
Era um castigo justo para quem é tão burro. E as outras mesas da biblioteca que faltam, p’rá-i trezentas e vinte e seis delas (326)? Essas seriam limpas pelo urso que cometeu a seguinte proeza: um artista, se calhar empolado pela fantástica agressão perpetrada por um terrorista cultural famoso contra o British Museum, resolveu autografar a sua presença no lugar 13 da sala G com o seu email, ano de escolaridade, curso, faculdade, mês e ano (por razões evidentes, vou ocultar o nome do Rambo para não expor em demasia este verdadeiro herói do terrorismo cultural - *********@aeiou.pt, 4º ano FLUP História Marco 2005). Não dá vontade de o mandar p’ra cadeia?
dr C
*não é link, mas se quiserem mesmo saber, criptografei o nome do artista depois de baixar à 6ª linha: 3.1.15.9.7.25.26.24.21. Se descobreirem, mandem-lhe um email ....

quarta-feira, junho 08, 2005

A Boca do Barulho

"As relações sentimentais deviam ter uma caixa negra, como os aviões"
Dr. Croivs
... Desta maneira as pessoas poderiam voltar atrás e confirmar o havia sido dito.
... Em caso de acidente, salvavam-se as conversas da tripulação.

segunda-feira, junho 06, 2005

Diccionário do Dr Croius #2

#2 – Frito (subs. neutr.): termo genérico aplicado a alimento cozinhado por imersão em azeite ou óleo a altas temperaturas. Surgiu na Alemanha quando uma senhora perguntou ao filho, “queres batatas, Fritz?”. Associa-se vulgarmente a quem está em maus lençóis, por exemplo Santana Lopes está frito.

domingo, junho 05, 2005

Rudimentos para a Giza de uma Saga

Reparamos no outro dia que a Editorial Presença se atreveu a publicar aquilo que o Dr. Croivs percebeu ser a parte de uma triologia ou tetralogia chamada (salvo erro) O Segredo das Pedras Mágicas, escrito por uma Sandra Carvalho. Folheamos, com doseada aprrensão, um dos tomos da série, intitulado Guerreiro Lobo. É à Sandra Carvalho que o Dr. Croivs dirije a sua primeira carta aberta, em forma do ensaio Rudimentos para a Giza de uma Saga.

Minha querida,
Constatamos estarrecidos que o excelente selo editorial da Ed. Presença se associou a V. Ex.cia para cometer a loucura de lançar mais uma patranhada vaginal sobre florestas, brumas, heróis vagos e uns mistérios insossos com runas, a que se chama vulgarmente de aventura. O formato não é novo, mas tende-se a subverter, empobrecendo–se o género, exemplo do Eragorn, As Brumas de Avalon e outros folhetins que ficam a anos luz de um Lord O’ Rings ou A Távola Redonda.
Perante o teor superficial e tão distante dos cânones associados ao género em questão patentes na obra, o Dr. Croivs toma aqui a liberdade de lhe permitir o acesso às fórmulas para alcançar o sucesso que os editores de V. Ex.cia tão sabiamente lhe souberam omitir.
Quanto ao género em questão, é usual distinguir-se o estilo saga do estilo canção ou lôa. As mais conhecidos de entre este último elenco são a Chanson de Roland e El Cid (em americano The Sid); por seu turno, as sagas, que é o que V. Ex.cia parece querer apresentar, têm características próprias bem vincadas que deverão ser respeitadas.
Em primeiro lugar, a história. Uma saga terá forçosamente de contemplar uma viagem, a demanda. Depois ter-se-á de objectivar essa demanda, através da conquista, da exploração ou da apropriação de um bem mítico ou sagrado. Parece-me que estas partes estão evidentemente relatadas na sua obra que o Dr. Croivs apenas folheou, não leu. A estruturação dos ambientes e a descrição das paisagens deverá incluir doses generosas de cenários florestais, turfeiras, áreas lacustres, tundra e montanhas cobertas de neve.
Depois temos o problema das personagens. O primeiro é a sua nomeação. O nome de uma personagem de saga deverá ser obrigatoriamente composto pelas últimas sete letras do alfabeto, isto é, t, u, v, w, x, y, z, na proporção de 75%, incluindo eventualmente algum K. Toda a gente sabe que as sagas vêm do norte, e se estiverem escritas numa linguagem parecido com o basco, mais realismo expressarão. Depois é só desdobrar anagramas com aquela constituinte. Dou-lhe alguns exemplos para ilustrar esta técnica de nomear personagens: tuvyz, tyvwin, zywyn, zyl, wytux, etc. Uma inteligência iluminada como a de V. Ex.cia poderá facilmente agrupar os nomes, de modo a constituir os rudimentos de um esquema clânico, que é a base da sociedade nórdica antiga. O seu herói principal poderia ser Zyl, filho de Zyl, o Bravo, neto de Zylwin, o Antigo. E por aí fora.
A composição do perfil das personagens também deve ser cuidado. Assim, ter-se-á em conta que o herói é sempre um indivíduo filho ou neto de rei, com uma tatuagem ou alguma marca de nascença (fala e lê uma dúzia de idiomas, maneja com destreza várias armas e é bem parecido, veste peles e é loiro), que foi raptado, ou abandonado, ou apenas perdido quando recém nado, cuja missão consiste na recuperação do trono de seu pai agora usurpado por algum tirano e devolver a justiça ao lugar. Para tal associar-se-á a um mago ou uma feiticeira que o educou, bem como a alguns mercenários de várias proveniências. Peça importante é a inclusão de algum desajeitado trapalhão que tem um papel importantíssimo no desfecho da saga, por transportar consigo uma chave especial, ou ser parente de algum dos verdugos da última cena.
Muito importante é a apresentação do tomo. Convenhamos que o nome Sandra Carvalho não é sonante. Qualquer escritor de sagas nunca poderá ter um nome português, ainda que em mirandês já seja aceitável. Cole a si própria um rótulo inteligente: transforme o seu nome, latinize-o. Carvalho tem o nome científico de quercus robur, ou mesmo niger. Aplicando-lhe a regra do anagrama das 7 últimas letras do alfabeto, poder-se-á obter um provisório Sandra Kwercus Rowur, com supressão do desdobramento do nome central para a inicial K; Sandra K. Rowur é de longe bem mais sofisticado, artístico e propenso a fazer um figuraço nos escaparates (até parece o nome daquelas matronas inglesas com óculos de armação de asa de morcego, azedas como limões e com ar de mal montadas, estilo Ágatha Christie).
A ilustração da capa é fundamental, por isso é necessário abandonar a mariquice pegada que tem na capa de sua obra. Aquilo é algum guerreiro? Parece o gajo do anúncio do William Lawson’s mas mais apaneleirado. Deverá primeiro, contactar o ilustrador das discos dos Manowar. Esses sim, é que são guerreiros viris e consentâneo com a cultura androcêntrica patente nas sagas.
Por último, o título. O que é que lhe passou pela cabeça para escrever uma coisa tão pirosa como Guerreiro Lobo? Porque não Águia ou até Leão? Era mais futebolístico e certamente vendia mais uns exemplares. Percebo que nas sagas a fórmula dragão estará algo esgotada e até perseguida, mas lobo? Sinceramente, isto é canzanas a mais. Se quer associar animais ao título, atire a ave mítica mais procurada, logo a seguir à fénix, o corvo, aliás de onde tomamos o nosso nome. Percebe-se que estará presa a essa fórmula típica dos gineceus, as pedras mágicas. Mas quer dar-lhe um nome de saga? Chame-lhe as runas, as Runas de Avalon (AH AH AH AH AH, perdão LOL). Mas vamos fazer isto de forma científica: escolha um número de um a nove. O seis? OK, pode ser. Agora diga-me, tem uma enciclopédia em casa,? Sim? Então abra o volume 6 da enciclopédia ao calhas e escolha alguns termos. O Dr. Croivs escolheu glicosúria (significa a presença de glicose na urina. Característica dos diabéticos ou dos indivíduos com perturbações renais) e, sorte das sortes, um sinónimo de pedra, gneisse (rocha sedimentar cuja composição é em geral granítica. A sua estrutura é laminar ou estratificada, nela participando ainda o felsdpato, o quartzo e a mica em palhetas). Como ninguém sabe os significados poderá ter assim alinhado o seguinte genérico para a sua futura obra: As Runas de Glicosury – A Gneisse do Corvo.
E pronto, o Dr. Croivs oferece-lhe os ingredientes para uma saga bem gizada, qualitativamente bem distante do tratado para adolescentes impúberes que tem andado a poluir as estantes das livrarias.

Croivs

P.S. I: Não esquecer que para escrever uma saga não basta imaginar um reino distante e ter lido as técnicas de guerra do Sun Tzu adaptadas à gestão de empresas.
P.S. II: O Dr. Croivs qualquer dia apresentará um esboço sinóptico de uma saga para lhe servir de referência.