segunda-feira, dezembro 05, 2005

Abyssus Abyssum

Conheço um velho ditado que diz “o diabo fala todas as línguas”. Como a fiabilidade dos provérbios costuma ser de 99,97%, o que é que se passa com o demónio que nos filmes de exorcistas só fala em Latim? É por ser antigo? É para dar o cunho de alta cultura ao género? (Eu sei que dois dos meus três leitores vão dizer no seu tom apaneleirado “mas o diabo também fala americano”; pois fala, de contrário nenhum americano ia ver os filmes, porque eles não gostam das legendas). Preste-se atenção.
Os clássicos do exorcismo têm como personagens uma rapariga, um padre e, claro, o diabo. A história também é sempre a mesma: um padre é contactado pelo arciprestado para exorcizar uma jovem que apresenta comportamentos estranhos, como vomitar, querer foder com tudo o que mexe e falar línguas esquisitas. O padre ainda questiona se não será um caso de bulimia associado à natural descoberta da sexualidade adolescente, mas quando lhe dizem que ela fala latim, aí vai ele de Bíblia, estolas e água benta.
Já se perguntaram porque é que o diabo encarna sempre numa rapariga? Isto já vem da Idade Média, mas nada mais natural que um indivíduo querer-se meter dentro de uma jovem (o termo técnico é possuir). Além do mais que as raparigas são mais enfáticas na pornologia que normalmente acompanha a manifestação demoníaca. O palavrão sai da boca feminina com mais violência e dá mais força à história.
O padre constitui o elemento controverso da trama, já que se encontra em fase de teste da fé. O diabo encarregar-se-á de o tentar de diversas formas, mas lá para o fim destacar-se-á numa dissertação teológica com demónio, quando se apuravam as origens e razões da manifestação.
O diabo, por seu turno, é uma personagem algo esquizofrénica com a mania das grandezas, até pela plêiade de heterónimos que o costuma rodear. Ele é belzebu, demónio, rabudo, satã, satanás, mafarrico, demo, lúcifer, tinhoso, príncipe das trevas, burro preto e anticristo. Não se lhe costuma ver a aparência original, mas tudo depende do montante disponível na produção de efeitos especiais. Nos confrontos com o padre, trava-se de razões a partir da vitimização, pois foi Deus quem o traiu e “blábláblá que me explusou do Paraíso e-não-sei-que-mais”. Depois tem a tal coisada da língua. O filme Stigmata constitui uma rara excepção à generalidade do inglês/latim falado pelo rabudo, já que a jovem possuída escrevia em aramaico e depois falava em italiano (“Il mesangero non és importante”).
Se de alguma coisa serviria o género exorcista no cinema, já que o diabo fala todas as línguas, seria a promoção dos cerca de 5.000 idiomas e dialectos conhecidos no planeta, 96% dos quais se encontram à beira da extinção, como por exemplo o igbo, o inuktitut e o quirguiz. E se o mafarrico quer dar uma de Príncipe das Trevas aristocrata ao versar o latim, pelo menos que fale o latim antigo, para não cair no erro do Mel Gibson que empregou o latim restaurado n’ A Paixão de Cristo e pôs os soldados romanos a trocar os v’s pelos u’s.

Socorro-me aqui das palavras de Sto. Isidoro, quando aludia às origens das pestilências: “quando pro peccatis hominum plaga et correptio terris inicitur, tunc aliqua ex ausa, id est aut siccitatis aut caloris ui aut pluuiarum intemperantia, aera corrumpuntur. Sicque naturalis ordinis perturbata temperie, inficiuntur elementa, et fit corruptio aeris et aura pestilens” (De Rerum Natura, XXXIX, I) (Quando, devido aos pecados dos Homens, a fúria dos elementos se abate sobre a terra, seja pelos seguintes fenómenos, a seca, calor violento ou excesso de chuvas, a atmosfera corrompe-se e a natureza perturba-se no seu equilíbrio, produzindo-se a contaminação dos elementos, a corrupção do ar e criação da aura pestilencial). Nos dias de hoje, em que as secas, o calor extremo e as recentes chuvadas e nevões assolam a Europa, é de estranhar que estas e outras desgraças do mundo não sejam imputadas aos pecados dos Homens e à acção do Príncipe das Trevas.
E será certamente de natureza maligna a orquestração do pérfido decreto que ordena a retirada do Crucifixo das salas de aula e não se faça o mesmo com a Menorah, com o Corão e com o Buda, símbolos religiosos que teimam em enfeitar as paredes das escolas portuguesas. Foi para isto que se constitucionalizou a liberdade religiosa? Foi?
C.

Abyssus abyssum: atracção pelo abismo, o abismo atrai o abismo ou um mal nunca vem só.

6 comentários:

carlos alberto disse...

Penso que o decreto proibe qualquer objecto religioso, e não só o crucifixo!
Abraço.

kiko disse...

"Orígenes, (...)acreditou que o próprio Diabo e os seus anjos, após suplícios mais graves e mais prolongados, conforme as suas culpas, devem ser tirados dos seus tormentos e associados aos santos anjos" diz o Santo Agostinho e não terá sido ele a orígene da humanidade cristã!? Pensar no demo como entidade maligna que queriamos desviar para o bem, corrompendo a essência tendencialmente boa dos homunculos!? Abraço

noasfalto disse...

Espera lá... Então os culpados dos ciclones, tufões, nevões, cheias, etc. não são o Blair, o Cherne e o Bush?
Não são estes o demo?

Sukie disse...

De mais.

kiko disse...

Então acabaram-se as pilhas!? Duracel é sempre a melhor escolha :D

Miguel de Terceleiros disse...

Bene, acho que uma gaja de línguas cai que nem uma luva para o casting do próximo filme de possuídas!