Eu lembro-me bem dos medicamentos do antigamente. Medicamentos (agora, se calhar já não lhe chamarão isso, mas azar) que ainda hoje se vendem (e resultam) e que nos conduzem aos tempos áureos da publicidade na caixa. Um deles por exemplo, apresentava a posologia e a eficácia do produto na própria tampa. Tratava-se de um unguento anti-micótico (eu não recordo o nome), que dava para todos os males de pele, do herpes ao cieiro, e que era vendido dentro de umas caixinhas cor de pérola. E poderia desfiar aqui um rol de grandes clássicos farmacêuticos que nunca careceram de literatura médica, porque a embalagem dizia tudo. As pastilhas Valda, por exemplo: bastava abrir-se a caixinha com aquela folha de eucalipto na tampa e já se sabia que as pirâmides verdes cobertas a açúcar serviria para aliviar problemas respiratórios e da garganta. As pastilhas do Dr. Bayard, por seu turno, só a visão da imagem do senhor agasalhado e levemente encolhido com o punho em frente à boca já esclarecia que o mal dele era tosse, logo, é uma embalagem de rebuçados para a tosse. E a pasta medicinal Couto, cuja publicidade já foi feita, pasme-se, pelo Herman José quando era muito novinho? A expressão dentes brancos significava dentes brancos, mais nada. Nada de tártaros, nada de cáries e nada de gengivas. Aliás, no tempo da Pasta Medicinal Couto não haviam gengivas!
A modernidade castrou a familiaridade do medicamento; a embalagem hodierna apresenta no exterior um nome a acabar em ox ou em ina, em detrimento da marca antroponímica, mais pessoal, mais íntima, porque Couto é nome de gente, como é o é Bayard e o é Valda (as pastilhas foram inventadas pelo senhor Aparício da Silva Valda). Este é o preço a pagar pela tecnologia. Um dia acabará por perder-se todo o saber da farmácia tradicional.
E para quê a literatura médica? Porque raio se coloca uma folhinha dobrada seis vezes dentro de uma caixa de medicamentos com informação escrita em letras tão pequeninas que mais parece uma apólice de seguros? E porque é que se chama literatura médica a um mero pasquim que não tem enredo, apresenta sempre as mesmas personagens (a saber, adultos, crianças, mulheres grávidas ou em aleitação, médico e farmacêutico) e que ainda por cima já abre a porta a uma sequela, pois metade do folhetim faz alusão a possíveis efeitos secundários?
A modernidade castrou a familiaridade do medicamento; a embalagem hodierna apresenta no exterior um nome a acabar em ox ou em ina, em detrimento da marca antroponímica, mais pessoal, mais íntima, porque Couto é nome de gente, como é o é Bayard e o é Valda (as pastilhas foram inventadas pelo senhor Aparício da Silva Valda). Este é o preço a pagar pela tecnologia. Um dia acabará por perder-se todo o saber da farmácia tradicional.
E para quê a literatura médica? Porque raio se coloca uma folhinha dobrada seis vezes dentro de uma caixa de medicamentos com informação escrita em letras tão pequeninas que mais parece uma apólice de seguros? E porque é que se chama literatura médica a um mero pasquim que não tem enredo, apresenta sempre as mesmas personagens (a saber, adultos, crianças, mulheres grávidas ou em aleitação, médico e farmacêutico) e que ainda por cima já abre a porta a uma sequela, pois metade do folhetim faz alusão a possíveis efeitos secundários?
Em 1993 tive a oportunidade de visitar Marrakesh. Este acontecimento saldou-se numa das minhas mais preciosas memórias de viagem. Como a farmacopeia árabe é secularmente reconhecida, a visita a uma farmácia na capital do Atlas afigurou-se-me como uma oportunidade de visitar um reduto inalterado do saber medieval. A dita fazia-se anunciar não por um néon cruciforme de cor verde, antes por uma série de sacos com cheios de pequenas folhas verdes, cuja única função é servir de presente oferecido pelo rapaz na altura de pedir a mão da sua noiva em casamento aos pais da moça.
A farmácia é composta por duas divisões: a mais exígua é a que tem o balcão de atendimento, com as paredes cobertas de prateleiras repletas de boiões e jarros cheios de produtos de mil cores. Na outra divisão existe, para além de muitas mais prateleiras e boiões, uma mesa de trabalho no centro da qual estão depositados os peneiros, os almofarizes, os pilões e demais boiões que servem à preparação das mistelas curativas a partir da miríade de panaceias de origem vegetal e mineral existente nos contentores vítreos. Estes não possuem rótulos e que eu visse, nada de literatura médica. O farmacêutico sabe bem o que existe dentro e cada boião. Lá é tudo natural, tudo manual, tudo sem receitas, muito pessoal.
Na farmácia portuguesa já começam a despontar os serviços informáticos de selecção de medicamentos a partir de computadores e de braços robóticos, mas ainda se podem assistir a algumas pérolas manufactureiras com verdadeiros truques de prestidigitador e à margem da informatização/ mecanização. Só o farmacêutico sabe onde está aquele medicamento com nome esquisito. Pede-se zolvirax e ele, pimba, abre a segunda gaveta e tira de lá o coelho; nós pedimos triticum e eles abrem a terceira porta a contar da esquerda e com a mão enfiada na primeira prateleira ainda perguntam "mas quer o 300 ou o 600?".
Mas a peça de resistência é o golpe do farmacêutico. Caixa do medicamento na mão, x-acto na outra, aponta o x-acto ao papel e rec-rec-rec-rec, quatro golpes sem furar a caixa, destaca com a ponta da lâmina o código de barras e cola-o à receita com uma tirinha de fita-cola. O golpe do farmacêutico é como a sombra do fotógrafo. Sem este primor técnico, é como ele não estivesse lá.
2 comentários:
De facto o "golpe farmaceutico" sempre me fascinou...É a imagem de marca dessa classe profissional!
Abraço!
Boas entradas.
Como as farmácias são uma mina tendem a ser cada vez mais sofisticadas. Quanto menos pessoal melhor, ou seja, o bem-dito downsizing.
Mas máquinas para execução do golpe do farmaceutico é que ainda não vi...
Abraço
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