quarta-feira, junho 22, 2005

Manta de Retalhos IX

prévia manta Mannanan

Levantei-me e tentei interromper a refeição da rapariga com um chavão de engate micro-machista, mas uma mão pousou no meu ombro. Voltei-me e ali estava ele, o tucano, agora de pistola em punho. «Foda-se», pensei, «a diplomacia nunca foi o meu forte. E agora?». Perante aquele quadro de quase tragédia, levei instintivamente a mão ao peito e atirei um defensivo
- Óh amigo, desculpe-me lá o meu comportamento; é que sempre ocorre qualquer coisa de transcendental quando encontro a minha ex-sogra.
- O quê, o senhor já foi parente daquele pote de gelatina verde? É de tomates, caralho! Se a minha sogra fosse daquele calibre, eu andava era por aí aos tiros – e dizendo isto recolheu o ferro no interior do casaco - Esqueçamos esta lamentável cena. Era para onde?
- Agradeço a sua solidariedade. Mas já não vou chegar a tempo, pois tinha de estar dentro de 15 minutos no centro, e frente ao Banco de Portugal!
- É difícil mas não impossível. A correr bem estamos lá em 14 minutos. Correu de volta ao carro e dali a pouco, enquanto eu fiquei pregado ao chão perante a reviravolta dos acontecimentos, atravessou o jardim a alta velocidade
- Vamos lá - gritou ele.
Sentei-me ao lado do Pires, assim era o nome legível no cartãozinho da Antral colocado no tablier e ainda com a porta aberta ele deitou a máquina a rugir pela vereda do parque até às fileiras de tráfego matinal. O rádio rangia a espaços "táxi à Boavista" táxi à Fernão de Magalhães", enquanto o Pires cortava o silêncio com os seus comentários próprios de pendura de rally
- Filho da puta desvia-te! Já estás a roer os dentes, corno do caralho? Não é nada contigo, óh paneleiro de merda" - e outras frases que tal. Depois atirou
- Óh doutor, você devia ter uma mulher do caralho, para ter alinhado com uma sogra daquelas – enquanto olhava para mim com ar de gozo. Sorri perante o tratamento dado à velha, mas só me saiu
- A filha ainda era pior que a mãe, só que sem os cortinados.
Rimos os dois. Depois seguramos firmemente o que pudemos agarrar porque quase nos enfaixávamos na traseira de um autocarro que saiu repentinamente da paragem. Nova colecção de impropérios. Arrancou ainda e parou 150 metros mais abaixo em frente ao Banco de Portugal.
- Cá estamos, chefe! Trabalha no banco, é?
- Não. O meu destino é ali para trás. Tome lá ... fique com a diferença, pela simpatia e pelo bom trabalho – estendi-lhe uma nota de cinquenta, ao que ele retorquiu, sorrindo
- Ninguém vai acreditar que fiz esta corrida em doze minutos e quarenta e sete segundos. Tome o meu cartão ... Para quando precisar deste tipo de serviços e outros que tal. Acenou-me e zarpou com uma chiadeira de pneus. O cartão era um rectângulo de papel onde foi escrito à mão "Pires", seguido de um número de telefone de cabine. «Mau», pensei.
Corri para a porta do meu destino e trepei as escadas três a três. Rompi pela porta do escritório e sorri para a secretária
- Olá – disse-me ela com aquele sorriso radioso de trás de um gloss discreto que me partia todo – estão à sua espera. «Mau», voltei eu a pensar.
Entrei na sala de reuniões e dirigi-me rapidamente ao topo da mesa ovalada. Lá já se encontrava o velho Borges
- Meu caro, desta vez chegou a horas – apertava-me a mão com aquela solidez de homem sossegado, como se nos envolvesse o corpo com aquele aperto de mão - Nada de violências, presumo?
- Hoje, felizmente, nada, senhor Borges – apertava-me a mão com aquela solidez de homem sossegado, como que com a mão nos envolvesse o corpo - Tudo normal.
- Muito bem – sorriu ele cúmplice. E olhando a plateia - Senhores, este é o especialista de que vos falei. É nele que deposito toda a confiança quando as coisas se tornam problemáticas na certeza que não evoluem para catástrofes.
Olhei em volta e dei conta de uma sala cheia de homens e mulheres, alguns de meia-idade, outros mais velhos, um ou outro na casa dos trinta. Todos estavam de olhos pregados em mim. «Financeiros?» pensei «Nã. Seguradoras». O velho Borges confirmava os meus pensamentos
- O segurado, caros amigos, está neste momento mais seguro.
Eu sabia que o segurado só me seria revelado no final, mas comportei-me como se tivesse sido eu a parir o segurado. Sentei-me ao lado do Borges, e comecei a anuir com ares de entendido cada afirmação que o velho disparava, ao que me apercebi, para tranquilizar aquela dezena de preocupados e assustados mediadores (era assim que eu gostava de lhes chamar).
- Senhores, nós garantimos toda a segurança e o contorno de possíveis obstáculos que se possam levantar no nosso caminho. É por isso que nos rodeamos dos melhores especialistas do género – olhando para mim paternalmente, ao que eu acenei que não e encolhia os ombros humildemente – para que tudo corra pelo melhor.
- Portanto, Senhor Borges – gralhou um homenzinho enfezado lá do fundo – garante a segurança total, é isso?
- Bem, convenhamos que é difícil das garantias de segurança a seguradoras – todos riram nervosos, e o velho Borges volveu falando mais baixo e mais solene – mas todos vocês conhecem a nossa casa à dezenas de anos. Não vamos facilitar.
Seguiu-se um silêncio pensativo. Todos estavam inseguros eu não sabia por quê. Eu estava ainda arredado do assunto, mas não estava a gostar deste pânico aparente. «Grande produto (ou caro) para que haja uma associação de seguradoras». Só estava a gostar da quarentona enxuta sentada à minha frente, bem arreada, que eu já imaginava em lingerie preta, «sim preta, porque a pele é clarinha e ela não tem perfil para o vermelho nem idade para as florzinhas», assim, a pedir-me com o olhar «mostra-me o que é viver», quando uma voz familiar castrou os meus pensamentos
- E que garantias nos dá o seu especialista? – isto era comigo. Icei-me na cadeira e voltei-me para o local de onde saiu aquela voz bem feminina e colocada, amistosa mas ao mesmo tempo demasiado segura e até trocista que eu já havia ouvido algures – é que nós raramente trabalhamos com este tipo de serviços e, muito sinceramente, o nosso cliente é muito avesso a este tipo de contratações, digamos ... inesperadas.
- Minha cara – volveu o Borges, enquanto eu fazia um esforço por tentar encontrar a mulher, mas um tipo germânico com 140 quilos ocultava a fonte da facada melodiosa – penso que o nosso homem poderá acalmar os vossos receios.
Levantei-me e então percebi a razão da troça na voz. A cavalona da noite anterior estava ali, sentada com olhos de imenso gozo, fitando-me muito divertida. Só me passava pela cabeça como era possível ela ter chegado ali primeiro que eu, se a havia deixado semi-nua em minha casa. O meu passeio no parque não fora assim tão extenso.
- Ora bem, um bom dia para todos comecei com voz segura - Para aqueles que não conhecem os nossos serviços convido-os a visitarem o nosso portfolio virtual – estendi um maço de cartões que tirei do bolso, juntamente com o mouleskine. Abri-o, calmamente, para mostrar à boazona que não acusei o toque e à quarentona que se preparasse que a seguir era ela – Em relação ao nosso assunto, garanto-vos que tudo está tratado para que o produto saia às tantas horas e chegue às tantas horas. Os locais de entrada e saída não são os ideais, mas cá nos arranjaremos. Podem fazer descansar os vossos clientes, porque vamos tratar do assunto de uma forma capaz. E só mais uma coisa - aqui estava a falar para a cavalona - nunca falhamos, não vai ser agora, por mais extravagante que seja o serviço, que vamos esmorecer ou subestimar a confiança que nos é imputada.
Sentei-me e o velho Borges sorria com deleite. Eu sabia porquê: «grande lata a deste filho da puta», devia estar ele a pensar «não faz a puta da mínima ideia do que quer que seja o trabalho, mas conseguiu acalmar todos estes cabrões».
- Bem - disse ele – acho que mais conversa é inútil. Não vos consigo dar mais garantias. Ou é ou não é.
E com isto terminou a reunião, porque todos disseram "é". Formaram-se grupos de conversação e só eu me mantive sentado a cofiar os meus pensamentos à espera da bomba, enquanto que dois dos meus cartões voltaram a deslizar pelo tampo da mesa. Um deles tinha um número de telefone e estava meio perfumado com um misto de lingerie preta e água de flores suavíssima; o outro só dizia "Tenho o teu número. Com que então nunca falhas? Pago para ver. PS: adorei a tua casa". Guardei-os juntamente com o cartão do Pires.
- A casa não é minha – disse por entre os dentes cerrados – é do meu pai.
Sairam todos e fiquei só com o Borges
- Caríssimo – sorria ele de alegria incontida – se aceitasses ser meu sócio, ninguém nos parava. Eu até pensei «este bastardo não sabe do que se trata mas já se atirou de cabeça» e é por isso que eu te admiro. Para ti não há contrariedades. E as gajas? Boas, hã? Bom trabalho!
- Sabe bem que eu até fazia isto de graça, mas infelizmente a ética não mo permite – Ele soltou um gritinho de riso, mas eu continuei - Vamos lá a saber. O que é o segurado desta vez? O tesouro do barco pirata? Um quadro raro descoberto fortuitamente? Um quilo de diamantes?
- Quase – disse ele, ao mesmo tempo que o sorriso desaparecia num cenho carregado - É uma pessoa.

6 comentários:

kiko disse...

Caro Dr. Croius,

Admirável a forma como pega em aspectos de retalhos anteriores e volta a incorporá-los no seu! Por outro lado, agradeço a abertura que conferiu à história... permite, agora, várias abordagens! Abraço

Unknown disse...

Nunca a manta teve um retalho tão bem cosido.

Parabéns

Miguel de Terceleiros disse...

Dr. tirava-lhe o chapéu se o tivesse! Neste momento, e citando alguém que eu conheço "estamos à vaga", qualquer coisa pode surgir.

hmscroius disse...

senhores: agradecido pelos comments lisongeiros. Agora, toca a trabalhar, porque eu também quero saber que merda é aquela do segurado!

kiko disse...

Pois muito parabéns!!!!!!!!!!!!! Espero que a feijoada nunca te falte e que as farpas saiam sempre afinadas!! Abraço

Miguel de Terceleiros disse...

Parabéns ò cabeçudo!!!
Tens uma prenda pra ti no meu blog!