segunda-feira, março 05, 2007

Da Hipocondria

Numa das minhas recentes passagens pelo hospital, identifiquei as duas formas de hipocondria mais frequentes dos corredores compridos e assépticos onde as pessoas por vezes aguardam, por outras adiam, la muerte.

#1. Hipocondria clínica: a forma mais comum de hipocondria, muito vulgar em senhoras que, em qualquer equipamento do Serviço Nacional de Saúde, procuram sentar-se em frente de outras senhoras, visando interpelar quem lhe está defronte. Primeiro fica em silêncio e se ninguém puxa a conversa, solta longos suspiros e fungados para se fazer notar, procurando os outros com o olhar; inquire então alguém dos presentes (normalmente quem lhe retribui a atenção) porque está ali e antes que termine de dizer “vim fazer umas análises”, já está a hipocondríaca clínica a discorrer longamente sobre as doenças que a infectam desde que o marido morreu. São o pesadelo dos clínicos gerais, porque se fazem acompanhar sempre e ostentam com orgulho as radiografias, ressonâncias e demais exames que atestam os variados males, caso dos bicos de papagaio e mal-estar geral em todo o esqueleto, artrites, artroses e tendinites, hérnias discais e inguinais, estiramentos e roturas, pé-de-atleta e grande variedade de fungos.

#2. Hipocondria culinária: género de patologia patente nos pacientes que infestam os Serviços de Urgência sem motivos emergentes, daí conhecerem todo o pessoal hospitalar, do Chefe de Serviço ao porteiro, assim como todos os meandros dos hospitais e os seus serviços. Surpreende os incautos pacientes que desesperam por um raio X ou umas análises com os seus próprios exames, “olhe que devem ser gases” para as dores de barriga, ou “se calhar foi um jeito que deu à coluna” quando a dor é no pescoço, porque já lhe aconteceu algo semelhante.
Esta forma de hipocondria associa a sintomatologia do quadro clínico do qual padece com a confecção de comida, ao mesmo tempo que acena aos interlocutores com o relatório de análises ao sangue com os valores três vezes mais alto que o normal. “Olhe que me deu umas dores aqui nos intestinos, Senhor Doutor, se calhar foi de um arroz de sardinhas que fiz ontem, sabe, refoguei uma cebolinha com uns pimentos e uma folhinha de louro, depois ajeitei três sardinhas gordas...” e segue a conferência perante o olhar atónico do clínico, despejando ainda uma receita de cabrito assado no forno e uma caldeirada de sete peixes.
Queixa-se de mal-estar em todo o sistema digestivo, azias, úlceras e cólicas, gases e consequentes problemas respiratórios, cálculos hepáticos, pedras na vesícula e em ambos os rins, prisão de ventre alternada com diarreia, obesidade, sangue gordo, enxaquecas e outras encefaleias, hipertiroidismo e outros quadros com sufixação em -ismo, começando em meteorismo e acabando no autoclismo.

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